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Introdução
Acto I
Surge Romeu ora pensativo, ora absorto na leitura, revelando desde logo o contraste com a extroversão do seu amigo Mercúcio. Seguidamente “a cidade acorda”, e a movimentação da manhã dá lugar a uma contenda quase inofensiva, que contudo evolui para a luta sangrenta entre as famílias rivais (sustentada pelo tema da Luta, com figuração rapidíssima dos violinos). Aparece Tebaldo (primo de Julieta), sorridente de caracóis loiros, ansioso por dar uso à sua espada. Aparecem também os chefes das famílias Capuleto e Montéquio, que brandem as espadas e elevam o nível do combate entre muitos mortos e feridos.
A cena termina com a “Ordem do duque”. O príncipe de Verona, a cavalo, entra com o seu exército acompanhado pela indignação dos habitantes da cidade, vestidos de camponeses (esta oposição entre camponeses, em defesa da ordem, e aristocratas desordeiros é algo que não provém de Shakespeare, nem mesmo do bailado original, parecendo uma originalidade do filme). Convém notar aqui – dada a sua importância no desenvolvimento do enredo – a ameaça com o castigo de morte, caso as famílias voltem a perturbar a paz da cidade.
Salta-se para os preparativos do banquete dado pelos Capuletos, e somos levados pela ama de Julieta ao quarto da jovem de quase 14 anos. Esta brinca com a ama ao som do "tema de Julieta” (marcado inicialmente pela escala de Dó) mas, com a entrada da mãe, ganha uma graciosidade que é sublinhada pela melodia da flauta. É neste momento que a mãe Capuleto revela a Julieta o pedido de casamento de Páris.
Sob a famosa “Dança dos Cavaleiros”, Páris oficializa o pedido de casamento a Julieta e vemos Tebaldo a liderar as celebrações, bebendo e rindo. Capuleto inicia o baile com pompa e dá depois lugar a Julieta e Páris, que dançam acompanhados pelo tema de Julieta. Quando Romeu está prestes a entrar no palácio dos Capuletos com Mercúcio e Benvólio, hesita recordando o sonho premonitório sobre algo que irá iniciar o seu percurso fatal nessa noite. É isso mesmo que acontece ao terminar a “Variação de Julieta”, a partir do momento em que Romeu e Julieta trocam olhares. Tebaldo identifica Romeu como um Montéquio, apesar de escondido pela máscara, e Mercúcio, também mascarado, toma a liderança do bailado de modo jocoso distraindo Tebaldo. Entretanto, Romeu e Julieta estão juntos e beijam-se, no primeiro momento em que toda a acção se centra no seu amor. Com o final do banquete, Julieta pede à ama que identifique o homem com quem dançou e ela percebe tratar-se do filho de Montéquio, da família inimiga. Tebaldo reconhece Romeu à saída.
A Cena da Varanda, provavelmente a mais famosa da peça de Shakespeare, é o momento em que, ao cair da noite, Julieta se lamenta pela má fortuna de se ter apaixonado por um Montéquio. Romeu invade o jardim e ouve os lamentos da amada, terminando ambos por trocar votos de amor fiel, manifestando ali mesmo o desejo de se casarem. Estes momentos são assinalados pela “Dança de Amor”.
Acto II
As danças populares na praça são apenas cenário de passagem para Romeu, que segue ao encontro de Frei Lourenço, onde acorre também Julieta. Fica apenas subentendida a colaboração da ama nestes intentos (embora seja completamente explícita e mesmo espirituosa no texto original). O frade (personagem que não assume também grande profundidade no bailado, apesar do seu papel fundamental no desenvolvimento do enredo) casa os jovens em segredo sob música sóbria e quase coral.
De regresso à rua, Tebaldo encontra Romeu e desafia-o, perante a calma deste que sente já Tebaldo como parte da família – afirmando ter-lhe mais amor do que ele imagina. Mercúcio, por outro lado, não evita a contenda e bate-se com Tebaldo, sendo atingido e morto. Romeu chora a sua morte, e rapidamente decide vingar o amigo desafiando Tebaldo e matando-o sob a vertigem dos violinos que regressam ao “tema da Luta”. O final do II Acto sublinha o luto da família, por um lado, e por outro faz regressar a imagem do príncipe, que irá cumprir a sua promessa: Romeu está condenado ao exílio, mas não à morte pois matou quem antes matara Mercúcio.
Acto III
Romeu está junto de Julieta no quarto desta, que o aguardava para a primeira noite de amor.
(O bailado não ilustra toda a acção descrita no texto original: neste momento, já Julieta sabe o que aconteceu, e o seu pai, Capuleto, combinara com Páris abreviar a data do casamento para dali a três dias, julgando assim atenuar a dor da jovem que acredita provir da morte do seu primo – quando se prende, isso sim, com o futuro exílio de Romeu.)
À prolongada despedida dos amantes com o amanhecer segue-se a entrada dos Capuletos, com Páris, no quarto de Julieta. Esta recusa casar com o prometido, pedindo o adiamento da cerimónia, o que causa a ira de Capuleto.
Após o solo de Julieta no seu quarto, esta parte ao encontro de Frei Lourenço. É ele, com o seu voluntarismo característico (e de consequências trágicas), que congemina a forma de resolver o problema, perante o desespero da jovem. Instrui assim Julieta para que tome uma poção que simulará a sua morte, fazendo-a permanecer inerte até que a sepultem. Enviará uma missiva a Romeu, exilado em Mântua, dando-lhe conta do plano, e este deve regressar para a despertar do leito fúnebre.
Julieta regressa a casa e mostra-se submissa diante dos pais e disposta a casar com Páris. Revela-se arrependida após se ter confessado e aconselhado com Frei Lourenço. Longe da agitação anterior, surge antes apática num dueto com Páris, como um fantasma numa realidade que já não é a sua. Quando fica sozinha, a sucessão de temas do bailado reflectem as lembranças de Julieta e o seu receio do túmulo.
O casamento está prestes a realizar-se, faltando apenas a noiva. A música renitente prenuncia a desgraça, até que entra a ama esbaforida após encontrar Julieta aparentemente sem vida. A consternação é geral.
Acto IV (Epílogo)
A acção permanece suspensa para nos revelar o que se passou com o emissário de Frei Lourenço (diferindo do texto original, também aqui em alguns pormenores, o argumento do bailado). Travado pelo caminho com um pedido de ajuda, entra nos aposentos de um moribundo apercebendo-se logo de que este sofre de uma infecção contagiosa. Vê assim as portas de Mântua fechadas à sua passagem, com receio da peste.
O funeral de Julieta decorre sob música pungente, e dali sai um mensageiro a informar Romeu, que decide então partir para o túmulo de Julieta e juntar-se a ela na morte. Ali ouve-se o tema de amor que fora apresentado noutros momentos do bailado, antes de Romeu tomar o veneno que o deixa morto. Julieta acorda, vê Romeu morto e atinge-se a si própria no peito com o punhal do amado.
O final trágico está consumado quando entra Frei Lourenço e, depois, os representantes de ambas as famílias, que dão ali mesmo por terminado o seu longo diferendo.
Muita tinta correu sobre as razões que levaram Prokofieff a decidir regressar definitivamente à União Soviética, no início de 1936, após uma bem-sucedida carreira entre a América e a Europa desde 1918. Especialmente quando, já em 1927, a sua viagem até Moscovo para mostrar a música do bailado Le pas d’acier no Teatro Bolshoi resultara já num interrogatório pela Associação Russa de Músicos Proletários e posterior categorização do bailado como “anti-soviético” – apenas pelo facto de o compositor ter recusado responder à questão sobre se a obra retratava uma fábrica capitalista ou soviética. Este organismo, contudo, viria a ser dissolvido em 1932, e as autoridades soviéticas iniciaram um processo de sedução de alguns dos seus melhores artistas que se encontravam em exílio voluntário. Convém lembrar que a expressão “realismo socialista” surgiu precisamente em 1932, ao mais alto nível, traduzindo uma política cultural que vinha sendo definida e que se fixou no Congresso de 1934. Assim, as obras artísticas deveriam: apelar ao proletariado; retratar cenas quotidianas do povo; ser representadas de modo realista; estar em linha com os objectivos do Estado.
A decisão de Prokofieff regressar surge em 1935, no âmago desta nova política, mas como corolário de uma relação fortalecida com a União Soviética nos anos precedentes que veio juntar-se à sua vontade de regressar a casa. Aqui foi instrumental o papel do embaixador soviético em Paris entre 1934 e 37, Vladimir Potyomkin, que se dedicava a convencer vários artistas fixados em Paris a regressar à União Soviética e seduziu o compositor com a perspectiva de grandes sucessos. A encomenda do bailado Romeu e Julieta, mas também da Cantata para o 20º Aniversário de Outubro, entre outras obras, revelou-se crucial nesta decisão. O ano de 1935, ainda antes do regresso definitivo de Prokofieff, acabou por ser um dos mais lucrativos da sua carreira especialmente pelos ganhos obtidos a partir da URSS. Mas o factor determinante surge quando lhe é dado a entender que o prolongamento da sua hesitação e a recusa em se tornar um representante oficial da música soviética teria como consequência o final das viagens à Rússia e da relação comercial de sucesso de que vinha usufruindo.
A primeira versão do argumento para Romeu e Julieta, encomenda do Teatro Kirov (Teatro Mariinski), foi desenvolvida em parceria com Sergei Radlov, director artístico deste teatro de São Petersburgo. Um dos aspectos desta versão que mais especulação causou ao longo dos anos foi a reviravolta que é dada à famosa tragédia de Shakespeare, alterando-lhe o final para que a morte de Romeu e Julieta seja evitada no último momento, terminando assim o bailado com um final feliz. As investigações mais recentes, publicadas por Simon Morrison em The People’s Artist: Prokofiev’s Soviet Years (Oxford University Press, 2009) e resultantes de uma investigação inédita sobre os arquivos soviéticos no início deste século, concluem que esta era na verdade a versão que Prokofieff pretendia levar à cena – fosse porque “os vivos podem dançar, mas os mortos não”, como justificou mais tarde, fosse por razões mais profundas. O manuscrito completo com esta versão foi então encontrado, e acabou por ser representado pela primeira vez muito recentemente, em 2008, nos EUA. Mas a versão que fez história foi outra, que chegou aos palcos através de um percurso bem atribulado, iniciado logo após a demissão tempestuosa de Radlov do Teatro Kirov. A encomenda passa para o Teatro Bolshoi de Moscovo, dirigido por Vladimir Mutnikh – que aprova a obra mas acaba vítima das purgas estalinistas, num contexto de sobressaltos que leva a novo adiamento da estreia.
A questão da intencionalidade do compositor na criação de uma versão com final feliz acaba por ser relevante para se compreender o modo como foi pensado o bailado. A morte dos protagonistas é o supremo castigo e a cura para a rivalidade entre as duas famílias oponentes; mas ao fazer recair o tema na oposição entre os jovens em busca do amor ideal – os verdadeiros revolucionários – e as famílias tradicionalistas de origem feudal, de um modo que levaria o argumento mais ao encontro da estética oficial soviética, torna-se discutível qual dos finais melhor serviria o “realismo socialista”. Daí que – como nota Karen Bennett em “Prokofiev’s Romeo and Juliet and Socialist Realism” – o tema apresentado no início da peça original, a rivalidade entre as famílias, seja precedido no bailado pela apresentação de Romeu. Este é o primeiro sinal de que a personagem ganha aqui um protagonismo muito maior, ilustrado pelo amplo desenvolvimento que é dado, ao longo do bailado, ao tema musical que lhe é associado.
Outro dos contratempos que assombrou a preparação do bailado antes da sua estreia, adiada sucessivamente até acontecer apenas em 1940 (após uma estreia absoluta em Brno, na Checoslováquia), foi a complexidade da música – nada problemática se se tratasse de uma colaboração com os Ballets Russes como as que Prokofieff desenvolvera duas décadas antes, mas menos pacífica no seio das tradicionais companhias russas. A bailarina Galina Ulanova relatou mais tarde o desconforto com o carácter da orquestração original, menos dada à monumentalidade do que às sonoridades da música de câmara, com alterações de métrica desafiantes e sonoridades modernistas. O papel do encenador Leonid Lavroski foi crucial no estabelecimento da versão final do bailado, aquela que se tornou famosa, nomeadamente exercendo pressão para que o compositor acrescentasse números destinados a exibir a técnica dos solistas, danças de grupo, repetições (supérfluas do ponto de vista de Prokofieff) e mesmo alterando passagens sem o conhecimento do compositor, que protestou por escrito sem sucesso.
O bailado acabou por ser estreado no Teatro Kirov a 11 de Janeiro de 1940, com Galina Ulanova e Konstantin Sergeiev nos papéis principais. No filme que vemos hoje, de 1955, uma já multipremiada e condecorada Ulanova repete o papel ao lado de Iuri Zhdanov numa produção especialmente concebida para este formato. Aqui, o bailado de duas horas e vinte minutos é condensado para cerca de uma hora e meia. O filme foi premiado com o Prix du film lyrique no Festival de Cinema de Cannes em 1955.
Ao longo da obra, deve notar-se o uso do Leitmotif como um dos elementos que mais contribui para a construção da dramaturgia. O tema de Romeu e Julieta (na Introdução), o tema associado a Romeu (apresentado logo na primeira cena), o tema em Dó de Julieta (com a jovial escala nas cordas e a contrastante melodia reflexiva nos sopros), os temas da Morte e da Luta – todos eles transmitem o espírito de cada momento através das metamorfoses de que são alvo ao longo do enredo. Este facto relaciona-se com a abordagem que Prokofieff faz à obra – como nota Karen Bennett –, privilegiando o plano individual, centrado no herói Romeu e “no seu desenvolvimento pessoal perante os obstáculos”, em detrimento de uma perspectiva essencialmente social, aquela que marca a obra original de Shakespeare.
Fernando Pires de Lima, 2016