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O meu desenvolvimento musical teve um trajecto semelhante ao de alguns amigos e colegas, atravessando o romantismo dos concertos para piano, o academismo neoclássico e tentativas de uma síntese ecléctica (...), e tomou conhecimento também das inevitáveis provas de masculinidade na auto-negação serial. Chegado à estação final, decidi abandonar o comboio já sobrelotado. Desde então tenho tentado seguir a pé.
As palavras são de Alfred Schnittke, o mais notório dos compositores do final do período soviético, cuja procura estética implicou também uma viragem no sentido de reenquadrar tradições. Tal como Stravinski, procurou reconciliar o movimento imparável da História com o caminho percorrido, encontrando – ou descobrindo – lugar para uma multiplicidade de alusões musicais através de ideias muito diversas das espelhadas pelo autor das Suites hoje ouvidas. A música da maturidade de Schnittke começou a desafiar deliberadamente as próprias noções de norma, de autenticidade, de “pureza” estilística, e mesmo a própria dicotomia tradição/modernidade, em favor de uma abordagem mais de acordo com o mundo de identidades fragmentadas e intenso questionamento ético, moral e espiritual que o rodeava. Schnittke assumiu como objectivo de vida ultrapassar o fosso entre a música “séria” e a de entretenimento, “mesmo que parta o pescoço ao fazê-lo”. A procura que levou a cabo desembocou numa expressão estilística peculiar a que se chama “poliestilismo”, que se pode definir em termos gerais como um sentido estilístico advindo da combinação criada através de citação e alusão a música de diferentes períodos e estilos. Em comum com Stravinski – e através também de Chostakovitch – Schnittke adoptou um humor irónico inescapável.
Moz-Art à la Haydn (1976-1977), para dois violinos e duas pequenas orquestras de cordas, é um óptimo exemplo desse humor. Para além da referência óbvia no título aos dois compositores maiores do Classicismo vienense, há mais: “Moz-Art”, em alemão, significa essencialmente “uma espécie de”, enquanto “a la Haydn” está certamente relacionado com a atitude lúdica da peça, aludindo ao sentido de humor célebre também em Haydn.
Mas a origem em Mozart e Haydn não se fica pelo título da peça. Schnittke adopta um procedimento semelhante ao de outras suas obras: toma como ponto de partida material de uma peça inacabada de outrem (neste caso, a parte de primeiro violino da Música para uma Pantomima, K. 446 de Mozart). Quanto a Haydn, Schnittke inspira-se na famosa Sinfonia n.º 45 (“do Adeus”) em que, perto do final da obra, Haydn pede aos músicos que abandonem o palco, um a um, apagando as velas à saída – ficando no final apenas dois violinistas. A alusão é reforçada pelo efeito dramático de escuridão total no início e no fim da peça.
Quando a peça se inicia, cada um dos instrumentistas em palco começa gradualmente a improvisar sobre o fragmento de Mozart, até à chegada de um acorde diminuto conjunto, em tremolo. Já com o maestro, encetam uma música rica em efeitos dramáticos e justaposições estilísticas, como se pode prever. O fragmento de Mozart aparecerá de diversas formas, desde enquadrado em contexto assumidamente clássico até conjugado com sonoridades que lhe são profundamente antagónicas. A música reflecte as contradições, contrastes e mudanças de rumo aceleradas que associamos ao século XX tardio, numa viagem onde as combinações, alusões e citações são sempre imprevisíveis – e em que os elementos do público reconhecerão decerto uma das mais famosas melodias de Mozart a aparecer pelo caminho. A permissividade e experimentação exibem tanto de superfície naif como de comentário profundo, denunciando o lado absurdo das convenções.
Pedro Almeida, 2016