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  • O meu desenvolvimento musical teve um trajecto semelhante ao de alguns amigos e colegas, atravessando o romantismo dos concertos para piano, o academismo neoclássico e tentativas de uma síntese ecléctica (...), e tomou conhecimento também das inevitáveis provas de masculinidade na auto-negação serial. Chegado à estação final, decidi abandonar o comboio já sobrelotado. Desde então tenho tentado seguir a pé.

     

    As palavras são de Alfred Schnittke, o mais notório dos compositores do final do período soviético, cuja procura estética implicou também uma viragem no sentido de reenquadrar tradições. Tal como Stravinski, procurou reconciliar o movimento imparável da História com o caminho percorrido, encontrando – ou descobrindo – lugar para uma multiplicidade de alusões musicais através de ideias muito diversas das espelhadas pelo autor das Suites hoje ouvidas. A música da maturidade de Schnittke começou a desafiar deliberadamente as próprias noções de norma, de autenticidade, de “pureza” estilística, e mesmo a própria dicotomia tradição/modernidade, em favor de uma abordagem mais de acordo com o mundo de identidades fragmentadas e intenso questionamento ético, moral e espiritual que o rodeava. Schnittke assumiu como objectivo de vida ultrapassar o fosso entre a música “séria” e a de entretenimento, “mesmo que parta o pescoço ao fazê-lo”. A procura que levou a cabo desembocou numa expressão estilística peculiar a que se chama “poliestilismo”, que se pode definir em termos gerais como um sentido estilístico advindo da combinação criada através de citação e alusão a música de diferentes períodos e estilos. Em comum com Stravinski – e através também de Chostakovitch – Schnittke adoptou um humor irónico inescapável.

     

     

    Composta em 1983, a Sinfonia n.º 4 de Schnittke – escrita para piano solo, alto, tenor, coro e orquestra – configura uma tentativa de “encontrar o geral no dissimilar”, segundo o próprio compositor. A obra espelha a complexa vivência espiritual do seu autor, nunca totalmente resolvida – Schnittke era de origem semi-alemã, nascido na Rússia, filho de pai judeu e ateu, dividido entre a ortodoxia russa e o catolicismo ao qual se convertera recentemente quando compôs esta sinfonia. Nela, combina diferentes tradições religiosas em termos musicais, conciliando elementos do znamenniy (cantochão da Igreja Ortodoxa russa), do canto gregoriano, do coral luterano e do canto da sinagoga, envoltos numa textura orquestral polifónica e densa.

    O ponto de partida para a construção da obra é o Santo Rosário católico, com a sua divisão em três partes – os terços –, cada uma narrando cinco mistérios da vida de Cristo na perspectiva de Maria. Primeiro, os Mistérios Gozosos (Anunciação, Visitação, Natividade, Apresentação de Jesus no Templo, Encontro de Jesus no Templo); depois os Mistérios Dolorosos (Agonia no Horto das Oliveiras, Flagelação de Cristo, Coroação de Espinhos, Transporte da Cruz, Crucificação); e finalmente os Mistérios Gloriosos (Ressurreição, Ascensão, Vinda do Espírito Santo, Assunção de Maria, Coroação de Maria).

    Esta disposição em três e cinco partes tem consequências também na definição estrutural da obra, para além de influenciar o fluxo emocional como é hábito em música de conotação sacra. Por outro lado, à superfície, o discurso estritamente musical desenha-se através de uma configuração assincrónica com essa construção, em um único andamento com 22 variações, numa alusão formal clássica.

    As três principais vertentes do Cristianismo – Ortodoxa, Católica e Protestante – são a base da obra em termos musicais. A peça abre com a moldura de três acordes misteriosos (que serão também o ponto final da sinfonia). Após esses acordes surge um motivo de três notas em intervalos de meio-tom que estará presente em toda a obra representando o canto da sinagoga e simbolizando a origem judaica comum às três formas de Cristianismo. Essa primeira enunciação do motivo é feita em cânone a três partes tocado por piano, cravo e celesta, no qual sobressaem os meios-tons não só a nível horizontal como vertical. Ao longo da peça, várias conjugações de três instrumentos vão aparecendo e reiterando este mesmo motivo, simbolizando momentos decisivos na vida de Cristo.

    Feita a primeira enunciação do motivo “judaico”, ainda nos mesmos instrumentos, tem lugar o motivo “luterano”, uma subida linear de seis notas. Imediatamente depois, o naipe de cordas, sul tasto (com o arco perto do braço dos instrumentos), evocando um ambiente muito diferente, traz o material melódico “gregoriano”, que fica também presente ao longo da sinfonia como que metaforizando uma linha de soprano. Durante a sinfonia, a “voz” Católica é contraposta à “voz” Ortodoxa por diferenciação das respectivas referências modais, sendo cada uma delas representada por configurações intervalares diferentes (tetracordes maior e menor, respectivamente) que se complementam de maneira a enriquecer o tecido cromático da obra por meios diatónicos – hábil maneira de encontrar o “geral no particular”, efectivamente.

    Ao longo deste caleidoscópio intrigante, há momentos para todo o tipo de detalhes e momentos-chave. O cânone entre o improvável grupo de trompete, trompa e vibrafone antecede a variação de piano solo (que tem elementos improvisatórios a lembrar a ideia de uma cadenza), que por sua vez desemboca numa repetição dos três acordes iniciais em tutti. Depois disto, a surpresa de entrada do tenor solista, sem texto, evocando o canto judaico (que aqui é baseado no motivo correspondente mas que, por tradição, é improvisado). Perto do ponto central desta sinfonia essencialmente simétrica, os intervalos de meio-tom (sob uma forma mais alargada, sétima maior) reaparecem em primeiro plano, desta vez progressivamente rodeados de apontamentos de sopros, clusters do piano e sons dos sinos, num crescendo tenso simbolizando o sofrimento máximo da Cruz, que depois se distancia aos poucos. Há depois outra variação de piano solo, a que se segue a intervenção do contratenor solista (também sem palavras) acompanhado por vibrafone e flauta. Mas a tensão ainda volta, com um trilo de cordas a crescer até um clímax e, depois, uma variação contrastante (com a indicação “Vivo”). Voltamos a ter depois os cânones a três partes, e a música faz uma clara distensão. Para o final Schnittke reservou-nos um momento mágico, de paz e união, em que o coro entra cantando o texto da Ave Maria em contexto diatónico.

     

    Ave Maria gratia plena

    Dominus tecum.

    Et Benedicta tu in mulieribus

     

    Ave Maria, cheia de graça,

    o Senhor é convosco.

    Bendita sois vós entre as mulheres

     

    Aqui os vários materiais melódicos confluem, revisitados serena e solenemente, para depois se perderem no silêncio entre sinos e gongos, como rios correndo da mesma nascente até se dissiparem entre margens e horizonte.

     


    Pedro Almeida, 2016 

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