-
Em 1933, no centenário do nascimento de Johannes Brahms, o compositor vienense Arnold Schoenberg dava uma conferência cujo título – “Brahms, o progressivo” – anunciava, sem margem para dúvidas, a defesa do carácter inovador da obra do compositor. Dava-se, assim, início a uma nova leitura do percurso de Brahms que, durante largas décadas, havia sido associado à facção conservadora e anti-wagneriana do debate em torno da música romântica: a fidelidade à tradição não corresponderia meramente a uma “aceitação passiva e acrítica desta” procurando, pelo contrário, novos recursos no seu seio que se inseririam no âmbito das linguagens modernas em vigor, defendia Schoenberg. A sua obra viria, de facto, a constituir um forte legado para as gerações associadas às primeiras manifestações de modernismo musical: é de evidenciar a repercussão da música de Brahms em compositores como Paul Hindemith, Edward Elgar, Alexander von Zemlinsky ou o já mencionado Schoenberg.
Contudo, já no século XIX, a polémica entre os “músicos do futuro” e os chamados “tradicionalistas” tinha tido em Brahms um dos seus protagonistas, de forma mais ou menos involuntária. O seu papel como anti-wagneriano foi enfatizado graças à acção de Eduard Hanslick, crítico e professor de História da Música que, na sua radical crítica à “estética do sentimento” do Romantismo, propunha uma arte musical autónoma de elementos extra-musicais e elegia como exemplo a música de Brahms. De facto, a preferência de Brahms pela música absoluta, uma necessidade já sentida em alguns dos compositores da primeira geração romântica (entre os quais Robert Schumann, compositor que teve um papel incontornável na experiência artística e biográfica de Brahms), parecia contrastar radicalmente com o ideal de fusão das artes de Richard Wagner, com a música programática de Franz Liszt ou com a estética de Hugo Wolf. Neste sentido, também o facto de Brahms se dedicar intensivamente à música de câmara, género pouco habitual nos catálogos dos compositores românticos depois da geração de Franz Schubert e Schumann, parecia ligá-lo mais ao “passado” do que à música então considerada “moderna”. Os “defensores da tradição” sublinhavam a importância da música “pura”, “absoluta”, “autónoma” e ”independente” de quaisquer elementos externos, assumindo a necessidade de perpetuar as formas clássicas tradicionais como é o caso da Sinfonia e do Concerto. As polémicas entre as duas facções atingiram o seu auge nos finais da década de 1850, e estavam particularmente presentes nas inúmeras discussões tidas nas páginas dos periódicos de então, entre os quais a Neue Zeitschrift für Musik, revista fundada por Robert Schumann mas agora dirigida por Franz Brendel, um dos maiores defensores das tendências modernas. Um artigo publicado em 1860, onde se afirmava que todos os maiores compositores da época estavam a favor da chamada “nova escola alemã”, provocou a tomada de posição pública que terá participado na atribuição a Brahms do estatuto de representante da facção dos conservadores.
A música de Johannes Brahms tem sido, assim, apontada como uma síntese da herança de Ludwig van Beethoven e de Schubert no domínio da música orquestral e camerística; do legado schumaniano e schubertiano ao nível da composição de Lieder e de música para piano; da linguagem de Bach e do contraponto barroco transversalmente na sua obra e, mais especificamente, na sua música coral; e, finalmente, da intrincada linguagem harmónica do século XIX.
Filho de Johanna Henrika Christiane Nissen e de Johann Jakob Brahms, contrabaixista e trompista, que assumiria funções no Stadttheater e na Sociedade Filarmónica de Hamburgo, Johannes Brahms viu o seu talento ser estimulado desde cedo por uma formação musical atenta. Aluno de piano de Otto Friedrich Willibald Cossel e de composição de Eduard Marxsen, aos dez anos interpretava obras de Johann Sebastian Bach, Sigismund Thalberg e Beethoven no seu primeiro concerto público. Ainda na sua juventude, partiu em tournée com o violinista húngaro Eduard Remény através do qual entraria em contacto, em Göttinghen, com o violinista Joseph Joachim, com os compositores Franz Liszt e Robert Schumann, bem como com a pianista Clara Schumann, figuras que viriam a ser marcantes no seu trajecto biográfico. Os seus interesses de juventude, na linha do gosto romântico da época, passaram pela literatura de Jean Paul e E.T.A. Hoffmann, e pela poesia de Joseph von Eichendorff, Heinrich Heine e Emanuel Geibel, patente de forma abundante nos seus Lieder. O seu gosto pelo folclore, cultivado desde sempre, abarcava tanto a vertente literária (incluindo contos e poesia) como a vertente musical, sendo marcantes no seu trabalho a citação e a inspiração popular.
Em 1853, Robert e Clara Schumann recebem Johannes Brahms na sua casa de Düsseldorf e com ele manteriam uma relação de íntima amizade durante toda a vida. De facto, o compositor viveria entre a casa dos Schumann e a casa do violinista Joseph Joachim até 1856, altura da morte de Robert Schumann. A partir da sua mudança para Viena, nos primeiros anos da década de 1860, Brahms dedicar-se-á, cada vez mais, à composição, vivendo das edições das suas obras, de concertos e de recitais, numa dinâmica favorecida também pela difusão tipicamente oitocentista do concerto público. De 1872 a 1875, será inclusivamente director dos concertos da Gesellschaft der Musikfreunde (“sociedade dos amigos da música”) de Viena onde dirige as suas composições, mas também obras de compositores barrocos como Heinrich Schütz ou Johann Sebastian Bach, ou dos seus coetâneos oitocentistas como Beethoven, Schubert, Mendelsshon, Schumann ou Max Bruch.
A estreia da sua primeira sinfonia, em 1876, dar-lhe-á, por fim, o epíteto de continuador da tradição beethoveniana, que Brahms reverentemente admirava. A partir de 1878, embarca numa série de viagens como pianista e director orquestral nas quais apresenta, sobretudo, as suas próprias obras. Viaja pelas principais cidades alemãs, pelos Países Baixos, Suíça, Boémia, Hungria, Polónia, vendo a sua obra ser difundida pelo continente europeu, incluindo Inglaterra, bem como pelos Estados Unidos. Na última fase da sua vida, quando parecia ter-se já retirado das actividades composicionais, volta ainda com um fôlego de entusiasmo ao conhecer o clarinetista Richard Mülhfeld, para o qual escreve ainda algumas das suas mais interessantes páginas.
Rosa Paula Rocha Pinto, 2016