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  • Joseph Haydn (Rohrau, 1732 – Viena, 1809) trabalhou na partitura de A Criação entre Outubro de 1796 e Abril de 1798. Foi um período de gestação mais longo do que o usual, tanto para o próprio Haydn, como para a época. Estão documentados os sucessivos esboços e as impressões da maneira como o compositor viveu a experiência. Sabe-se, por exemplo, que confessou que o trabalho lhe tinha feito sentir a devoção mais profunda da sua vida. Manifestou ainda a consciência de estar a escrever “para a história”, uma forma de encarar a composição nova na época e que prenuncia o que se tornaria uma das tendências dominantes dos dois séculos seguintes. Podemos ler isso nas suas palavras: “empreguei muito tempo nela porque espero que permaneça por muito tempo”. Para além de tempo, Haydn aplicou também muita energia na composição da obra: após o seu termo, atingido “graças a Deus”, teve um esgotamento que piorou depois de a ter dirigido na estreia. No que diz respeito ao libreto, a sua autoria foi inicialmente atribuída ao barão Gottfried van Swieten. Filho de um físico, foi educado pelos jesuítas e acabou a sua carreira de alto funcionário como responsável pela Biblioteca Imperial de Viena. Foi amigo e protector de Haydn, Mozart e de outros compositores contemporâneos e, como bom amador, chegou a escrever óperas e sinfonias. Esta personagem histórica será talvez melhor lembrada se for identificada com o elegante conselheiro da corte que defende as óperas cantadas em alemão, interpretado por Jonathan Moore no filme Amadeus de Milos Forman. Porém, tal como as investigações de Edward Olleson e Nicholas Temperley demonstraram, A Criação baseou-se num libreto anónimo escrito originalmente em inglês que foi posteriormente adaptado por van Swieten num texto bilingue. Supostamente, a primeira versão – baseada em Paradise Lost, de John Milton, e em livros bíblicos, nomeadamente Génesis e Salmos – foi oferecida a Georg Friedrich Händel, o qual nunca a utilizou. O citado Nicholas Temperley foi quem destacou a ligação entre o interesse de Haydn pela oratória como género musical com a sua assistência aos grandes festivais londrinos dedicados a Händel. A experiência fez com que se lhe colocasse a possibilidade de usar o género como veículo para atingir uma ampla audiência, nas palavras do musicólogo, “uma massa maior de pessoas pertencentes à classe média que respondia, como um único corpo, à sublime e inefável música”. Aparentemente, foi o produtor de Haydn em Londres, o empresário de origem alemã J. P. Salomon, quem suscitou a ideia, propondo ao compositor o libreto que Händel tinha recusado. Isto pode explicar que, posteriormente, corresse o boato de que ponderou levar Haydn aos tribunais por ter usado, traduzido e estreado o texto em Viena sem autorização. É plausível atribuir a Salomon a ideia de transformar Haydn num segundo Händel: tê-lo-ia feito abandonar a sinfonia, iniciando-o num género que, de facto, se tornou um dos mais populares do século XIX. A oratória foi apresentada na capital do Império austríaco em 1798, numa das salas do palácio do Príncipe Joseph zu Schwarzenberg. Sabe-se, no entanto, que o público se aglomerou na rua, sob as janelas e nas vias próximas para a escutar. Causou também a admiração da aristocracia e foi reposta sucessivas vezes. Provavelmente, a zanga de Salomon foi a causa de só ter sido executada publicamente em Londres em Março de 1799. Ouviu-se em Covent Garden, na versão inglesa e, para além de ser regularmente escutada na Áustria, antes da morte de Haydn circulou por diversos países europeus e também nos Estados Unidos da América.

     

    Do Caos ao Amor, representados com música

    A partitura de Haydn contém toda a história da música. Podemos identificar a sua influência na obra de Mozart, Beethoven, Brahms e, inclusivamente, Messiaen, Stockhausen ou Ligeti… No sentido contrário dos ponteiros da história, Haydn olhou para atrás usando as oratórias de Händel como modelo, assim como os géneros profanos da ópera séria e da ópera bufa. Pode ser interpretada como uma metáfora do mundo completo, surgido da palavra de Deus. Isto explica-se se pensarmos que pretendia representar o acto fundacional da vida, a passagem do caos para a ordem e das trevas para a luz. A representação do caos inicial tem motivado muitos comentários. O primeiro deles foi emitido pelo próprio Haydn, o qual o identificou com a ausência de cadências, sublinhando desta forma a sua dupla associação com a obscuridade informe e com o infinito. Autores como Charles Rosen têm defendido a aplicação da forma de sonata a este primeiro andamento lento, cuja afinidade com os que fazem parte das Sete Últimas Palavras de Cristo na Cruz, originalmente escritas por Haydn para Espanha, tem sido notada. Porém, um dos especialistas no compositor e na sua época, A. Peter Brown, defende uma tese mais interessante quando o vincula ao ricercare. Brown sublinha desta forma a sua função de exordium, desenvolvendo uma análise retórica do trecho. A última frase merece, sem dúvida, uma explicação. Por um lado, a audição evidencia pormenores que se podem associar à ideia de desordem, própria do caos: material temático fragmentário e de contorno indefinido, escalas isoladas e arpejos que se destinam aos sopros, assim como um tipo de harmonia indefinida e a negação das expectativas cadenciais típicas do estilo clássico. Por outro lado, num plano mais profundo, também revela um andamento harmónico coerente e, sobretudo, um trabalho contrapontístico muito coeso. É possível identificar a origem do material melódico utilizado na célula inicial, constituída por um movimento intervalar de segunda menor descendente (nos violinos, compassos 2-3). Brown relaciona esta técnica com algumas das obras corais de Haydn, onde se observam as mesmas liberdades que se encontram na secção. Assinala ainda as figuras de retórica musical que aparecem no fragmento: o exordium é, justamente, a designação retórica da primeira parte de um discurso, a introdução ao logos. Haydn insiste em vários gestos associados ao patético, como por exemplo desenhos melódicos descendentes com um intervalo de quarta ou desenhos circulares truncados ou deformados, opostos ao círculo completo que simboliza a perfeição. A intervenção inicial dos primeiros violinos (compassos 2-3) pode ser uma boa ilustração. Então chega, não apenas a luz, num dos momentos mais impressionantes de toda a história da música ocidental. O comentário de Haydn às palavras “and there was light” é a cadência a um sonoro acorde de Dó maior. O compositor sabia perfeitamente o efeito que esse momento iria provocar na audiência, ou pelo menos é o que se deduz da descrição feita da estreia por um dos seus amigos: “Ninguém, nem sequer o Barão van Swieten, tinha visto a página da partitura onde o nascimento da luz se descreve. Foi a única passagem da obra que Haydn manteve em segredo. Quase posso ver agora a sua cara quando esta parte soava na orquestra. Tinha a expressão de alguém que está a morder os lábios, quer para ocultar o seu embaraço, quer para guardar um segredo. E no momento em que a luz rasgou o universo pela primeira vez, eu teria dito que os seus olhos ardentes lançavam raios. O encantamento dos vienenses electrificados foi tão unânime que a orquestra não conseguiu continuar até passados alguns minutos.” Os números vocais subsequentes podem ser divididos em três tipos principais: recitativo secco ou sem acompanhamento orquestral, recitativo acompanhado e árias. Há ainda alguns movimentos vocais de conjunto: um hino (n.º 28: dueto de Eva e Adão e coro) e várias partes corais. Encontramos enquadrado no primeiro tipo uma das peças mais curiosas da partitura (n.º 29). Faz parte da terceira parte da obra, onde se celebram, no Jardim do Éden, as primeiras horas de felicidade de Adão e Eva, precedendo o dueto onde ambos se declaram amor mútuo. De carácter operático, no dito recitativo opõem-se representações musicais do masculino e do feminino. A decisão (triádica e cadencial) de Adão contrasta com a sedução (harmonicamente ambígua e muito ornamentada, inquietante reminiscência do Caos) de Eva. No entanto, esta distinção de género é apenas momentânea: no dueto que começa o número anterior, ambos adoram o Senhor em pé de igualdade, partilhando a mesma linha melódica. Por seu turno, os recitativos acompanhados reservam-se principalmente às descrições, particularmente as da natureza (os elementos, os astros, os animais...). São exemplos os números 4, 13 e 21, os quais evidenciam particularmente a influência de Milton. Os três apresentam, aliás, exemplos de Thonmalerey (pintura sonora), decorando e tornando mais expressivo o libreto. As árias e os conjuntos vocais (um dueto e dois trios) são desenvolvidos a partir de modelos operáticos, mas estes são igualmente adaptados às exigências narrativas e descritivas do libreto. Assim, Haydn exibiu a sua inventiva sonora na representação das trevas, dos mares, vales, montanhas e rios ou de vários tipos de pássaros. Esta última peça (n.º 16), uma ária cantada pelo anjo Gabriel, ilustra o anúncio da criação das criaturas que voam no firmamento aberto. A águia, a cotovia, a pomba e o rouxinol são as aves escolhidas para simbolizar a sua variedade, incidindo na natureza canora das três últimas. No entanto, é a imagem do orgulhoso voo da águia em direcção ao sol aquela que inicia a peça. A seguir, é evocado o canto dos restantes pássaros: a beleza do seu canto é tratada no texto como uma reminiscência da felicidade do Paraíso, onde os lamentos não tinham lugar. Os esboços desta peça, estudados por Karl Geiringer, mostram que Haydn ponderou inicialmente a possibilidade de se servir do estilo operático napolitano, caracterizado pela sua ornamentada coloratura e que ele tinha usado vinte anos antes na partitura de O retorno de Tobias. Porém, a versão final da melodia, apesar dos restos do mencionado estilo, apresenta uma singeleza assombrosamente controlada. É cantada por uma soprano, correspondendo à tradição que atribuía a Gabriel uma aparência feminina. O mencionado hino (n.º 28) tem sido desde sempre considerado o melhor andamento da obra. É o mais longo e consta de três partes. Na primeira (Adagio), Eva, Adão e o coro agradecem o mundo acabado de criar, num momento de devoção serena e contemplativa. A seguir (Allegretto), Adão e Eva, de novo com o coro, dedicam as suas alegres loas às maravilhas da criação, exortando-as a louvarem com eles o Criador. Haydn organizou esta secção central em forma de rondó com quatro temas principais, baseado num hábil plano harmónico. Finalmente, a palavra é dada aos anjos, em extática adoração. Os trechos corais deste número evidenciam a permanência do estilo mais severo, associado ao contraponto estrito e cujo modelo é Händel.

    A Criação como objecto de cultura

    A Criação tem provocado múltiplos discursos críticos que, a partir de diversas posições, têm sublinhado o seu valor para a cultura alemã. Na altura da sua estreia, Haydn estava na fase final do seu percurso artístico e era considerado o compositor mais importante do mundo. Por isso, não admira que fosse logo salientado o génio do criador que luta contra o caos do material sonoro original, dando-lhe forma através da sua fantasia. A obra foi descrita como o “novo mundo no qual nada parece ser usado ou conhecido e onde tudo é fresco como o rossio da manhã”. Estes tópicos – hoje em dia tão familiares que nos parecem velhos – eram na altura novidade e revelam o processo pelo qual se fixaram na crítica alemã de fins do século XVIII e inícios do XIX. Posteriormente, sobretudo a partir da década de 30, quando a música de Haydn ficou fora de moda, difundiu-se um certo desprezo crítico em relação à obra: as suas representações sonoras começaram a parecer ingénuas e aborrecidas. Um outro especialista em Haydn, James Webster, tem lançado uma interessante hipótese: A Criação seria o reflexo das discussões, recorrentes na época, em torno do conceito de sublime. O musicólogo americano argumenta que estes debates conformaram uma das correntes mais consistentes da história da composição durante os cinquenta anos transcorridos entre 1780 e 1830. O sublime – que poderia ser formulado como aquilo que excede os poderes conceptuais da imaginação – identificou-se na altura com as últimas sinfonias de Haydn e de Mozart e com as de Beethoven. O sublime musical pode ser representado, por um lado, pela uniformidade (notas solenes, pesadas, longas pausas que interrompem o desenho completo de determinado tema); por outro lado, pode ser também evocado através do excesso, da variedade, com impressões sonoras que se sucedem de forma contrastante e abrupta. O andamento inicial de A Criação ilustra este tipo de soluções, particularmente no momento em que surge a luz. O sublime, no sentido de majestoso, é evocado na enfática pausa final na última vez em que o trio repete a palavra “keiner” antes da – majestosa – entrada do coro. A conclusão da última secção da segunda parte (“Volendet ist das grosse Werk”) é comparável. Aqui, a técnica produz um marcado efeito de intensidade que se acumula progressivamente. A lição foi bem aprendida por Beethoven. O elemento religioso da obra também foi bastante discutido na altura. Para alguns críticos, na música sacra devia perdurar a severidade da música mais antiga. Essa atitude historicista tornar-se-ia predominante no século XIX. Ora a liberdade e a variedade da música de Haydn não obedecia a essa limitação. O texto verbal utilizado, por seu turno, reflecte uma religiosidade impregnada de Iluminismo. A profusão das referências à natureza e a dignidade do primeiro casal de humanos, a identificação de Deus com a luz, a bondade do mundo e a razão são alguns dos indícios que permitem afirmá-lo. A própria vivência religiosa de Haydn, pelo menos a partir dos testemunhos de amigos, era um exemplo de devoção reconciliadora e tolerante. O humanismo da obra tem sido também relacionado com a iniciação maçónica de Haydn, à qual chegou pela mão de Mozart. Esta conexão, entre aquilo que a partitura nos mostra e o ideário da loja a que ambos pertenciam, não está documentada, embora, de facto, a obra não seja incompatível com o pensamento maçónico. A Criação contagia, sobretudo, pelo optimismo do seu autor. Ele quis brindar-nos, com a sua música, com “um momento de paz e descanso”, para que os seus ouvintes se consolassem, nem que fosse por instantes, da miséria e da dor originadas com a perda do Paraíso. Haydn não quis contar com a sua música essa parte da história.

     

     


    Teresa Cascudo, 2009 

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