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  • Parte I. A Adoração da Terra

    1. Introdução

    2. Augúrios primaveris, Dança dos adolescentes

    3. Jogo do rapto

    4. Danças primaveris

    5. Jogo das tribos rivais

    6. Cortejo do sábio

    7. Dança da terra


    Parte II. O Grande Sacrifício

    1. Introdução

    2. Círculo místico das adolescentes

    3. Glorificação da eleita

    4. Evocação dos antepassados

    5. Ritual dos antepassados

    6. Dança sacrificial 

     

    “O teatro parecia sacudido por um terramoto. Parecia ruir. As pessoas gritavam insultos, pateavam e assobiavam… havia bofetada e até mesmo quem desse murros. Não há palavras para descrever uma cena assim.”

    [Valentine Gross, após a estreia de A Sagração da Primavera]

     

    “…um médico, um dentista…dois dentistas!”

    [anónimos, durante a estreia]

     

    “Exactamente o que eu pretendia.”

    [Diaghilev, após a estreia]

     

    A Sagração da Primavera protagonizou aquela que é, talvez, a mais famosa estreia de sempre de um espectáculo. A polícia teve que intervir para acalmar os ânimos. As opiniões dividem-se sobre se a causa de tal rebelião foi a música ou a coreografia. A junção das duas coisas, até porque a segunda teve por base a primeira, será talvez a melhor resposta. No entanto, não restam dúvidas de que A Sagração da Primavera de Stravinski representou uma ruptura com cânones anteriores da composição e se aventurou por novos caminhos. No entanto, e surpreendentemente, na base de toda a sua génese esteve sempre a música tradicional russa.

    “Na Sagração da Primavera procurei expressar o sublime nascimento da natureza renovando-se – todo o renascer panteísta da colheita universal”, escreveu Stravinski a 29 de Maio de 1913 no dossier de imprensa para a estreia do bailado. Este tema insere-se perfeitamente na tradição russa pagã: a Noite de S. João no Monte Calvo de Mussorgski ou a Páscoa Russa de Rimski-Korsakov são dois exemplos anteriores onde os rituais pagãos estão presentes.

    Stravinski ancorou-se fortemente a essa tradição russa ao recolher muitos dos seus temas em canções populares lituanas compiladas por Juskiewicz. Apesar de Stravinski nunca o ter admitido, uma comparação entre a partitura da Sagração e a antologia de Juskiewicz permite ver os mesmos contornos melódicos vestidos de ritmos diferentes. Esse facto dá uma grande unidade idiomática à Sagração da Primavera.

    O bailado divide-se em duas partes: A Adoração da Terra e O Grande Sacrifício. No ‘Prelúdio’ da primeira parte (antes da cortina levantar) escutamos um solo do fagote no registo agudo no qual nos confrontamos com o momento que antecede uma nova gestação e o potencial infinito de crescimento que uma nova vida representa. Stravinski escolheu as madeiras propositadamente, pois as cordas têm um simbolismo associado à voz humana muito forte. A forma como a textura orquestral cresce, mantendo cada instrumento a sua individualidade, é uma metáfora do despertar da Primavera.

    Os Augúrios Primaveris dão lugar a uma dança onde jovens adolescentes estão na companhia de uma mulher que conhece os segredos da existência, facto que leva a pensar que terá vários séculos de vida. Ela é um misto de mulher e animal que corre sobre a terra enquanto os jovens filhos batem com os pés no chão ao ritmo do pulsar da Primavera. A mesma nota é repetida com diferentes acentuações rítmicas. Este tipo de ritmo, aliado à imagem ritual que Stravinski transmitiu a Diaghilev, deu origem a uma coreografia completamente distante do bailado clássico, razão pela qual a estreia da peça descambou num chorrilho de insultos, que depressa se transformaram em bofetadas, socos e pontapés entre os que apoiavam o espectáculo e os que se sentiam ultrajados. A rebelião só terá parado no fim da primeira parte quando a polícia irrompeu na sala.

    São os metais e a percussão, numa espécie de delírio rítmico e polifónico, que anunciam e desenvolvem a música em Jogo do rapto. As Danças Primaveris trazem o elemento feminino para o centro da acção. A música transforma-se numa marcha de grande sensualidade. Uma a uma, as jovens saem do rio e juntam-se num círculo com os rapazes. Esta união vai originar diferentes tribos. Na forma como Stravinski organizou a estrutura da música está implícita a imagem de um cataclismo antes da organização tribal, metáfora que tem implicações na forma. Após uma secção agitada, a flauta alto e o clarinete piccolo vão fazer a transição para o Jogo das tribos rivais – é a calma antes da tempestade.

    Trombones e tubas acompanhados pelos tímpanos anunciam esta luta entre as tribos. Estas estão identificadas pela alternância de pequenos motivos nos diferentes naipes da orquestra e manifestam uma agressividade rítmica patente ao longo de todo o número. Segue-se o breve Cortejo do sábio, um momento dominado pelos metais. Quatro compassos de quase silêncio, em pianíssimo de reduzida textura, completam um momento a que Stravinski chamou O Sábio, o pontífice das tribos que vem bendizer a Terra. É a transição para a Adoração da Terra, a dança que celebra toda a euforia da Primavera.

    A segunda parte, O Grande Sacrifício, tem início com um estranho oscilar entre duas notas, um fundo musical quase autista que Stravinski descreveu como um “jogo obscuro das jovens adolescentes.” Entre elas, uma será a eleita para devolver à Natureza a força que lhe foi roubada pelo desflorar da Primavera. O Círculo místico das adolescentes retoma os contornos melódicos sensuais que ouvimos na primeira parte (Danças Primaveris), agora cantados nas cordas enquanto metáforas da voz humana. Este é um momento lento, de alguma tristeza e grande expectativa sobre quem será a eleita.

    A Glorificação da eleita traz de novo um momento de grande agitação e complexidade na escrita orquestral manifestando toda a força da natureza. Escolhida a eleita, ouvem-se três secas pancadas nos tímpanos: são chamados os antepassados ao som dos sopros, madeiras e metais, num novo ritmo de marcha irregular.

    O Ritual dos antepassados tem início com um belo solo do corne inglês, sobre um pulsar regular e em pianíssimo dos outros instrumentos, ao qual se vem juntar a flauta contralto e depois o clarinete. Progressivamente, os antepassados criam um círculo em redor do lugar que a natureza escolheu para o Grande sacrifício. Na Dança sacrificial uma jovem dança até à morte. É o momento mais fantástico e misterioso de toda a obra. Começa lentamente numa dramaturgia rítmica e vai crescendo progressivamente na sua complexidade melódica e harmónica juntando diferentes instrumentos. A exaustão a que a jovem chega não é representada num jogo de velocidade mas numa multiplicidade polifónica que parece superar as faculdades humanas. Ao tomar consciência do estado em que a jovem se encontra, os antepassados aproximam-se do centro do círculo e erguem-na antes que ela sucumba. Ouve-se um arpejo nas flautas, ecoado nas cordas e no piccolo, e tudo termina. A Primavera foi consagrada.

     


    Rui Pereira

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