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A divindade que em meu peito mora
Pode agitar-me a alma até ao fundo;
Em minhas forças manda, mas lá fora
Não tem poder sobre as rodas do mundo.
E assim a existência me é um peso,
A morte ansiada, a vida um ódio imenso.
Wagner coloca esta sombria passagem de Fausto (aqui na tradução de João Barrento) em epígrafe à sua partitura. É retirada de uma das cenas iniciais do poema de Goethe, em que o protagonista, Fausto, numa das suas primeiras conversas com Mefistófeles, exprime a sua frustração e mais profundo desalento. É o culminar das suas tumultuosas atribulações espirituais e metafísicas, com que a tragédia goethiana se inicia. Fausto lamenta-se de ser infeliz apesar de todo o conhecimento que tem das mais importantes disciplinas académicas: “Sei mais, é claro, que todos os patetas, / Mestres, doutores, escribas e padrecas; / … / Mas não me resta réstia de alegria, / Não me iludo com vã sabedoria, / Nem creio que tenha nada a ensinar / À humanidade, que a possa salvar”. Tomando consciência dos limites do conhecimento humano, e incapaz de compreender os profundos mistérios da Natureza, decide voltar-se para a magia. Mas nem isso o serena, nem isso o retira da depressão.
É esta atmosfera emocional que a Abertura de Wagner evoca. Logo no início, ouvimos uma melodia lamentosa e algo sinistra nas tubas e contrabaixos (os instrumentos mais graves da orquestra). Segue-se um motivo recorrente nos violoncelos e violas, um pouco mais activo mas igualmente misterioso e obscuro, sugerindo talvez as afinidades de Fausto com o mundo da magia. Quase todo o início da obra é sombrio, aos poucos se desenhando o tema principal da obra, muito tenso e melancólico, nos violinos.
Essa atmosfera emocional domina de tal modo a obra de Wagner que o compositor Hans von Bülow considerou, em 1860, que o tema poético da Abertura é o sofrimento humano — não só o de Fausto, mas o sofrimento humano num sentido geral — fazendo da humanidade no seu conjunto — e não apenas Fausto — o respectivo herói. Do mesmo modo, em 1886, o compositor e crítico inglês Frederick Corder afirmava que o tom sombrio da obra tinha até contribuído para a sua pouca popularidade: “Um grito de desespero não é algo muito agradável para o público”. São muitos os autores, de resto, que associam o carácter da obra a circunstâncias biográficas: Wagner compôs a obra no Inverno de 1839-1840, em Paris, num período em que enfrentava sérias dificuldades financeiras e até de reconhecimento artístico. Poderá então argumentar-se que a obra exprime também o sofrimento do próprio compositor.
Para alguns, a Abertura é tão sombria que dá uma imagem incompleta da obra de Goethe: François-René Tranchefort, por exemplo, afirma que “se Wagner pretendia resumir a obra de Goethe, o menos que se pode dizer é que ficou pelo caminho”. Sobre isso, podemos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, nem toda a obra é uniformemente sombria: há também momentos mais luminosos e esperançosos, de carácter mais lírico, que poderão sugerir a possibilidade de redenção de Fausto, ou até o seu amor por Margarida. Em segundo lugar, não foi intenção de Wagner dar, nesta Abertura, uma imagem completa da obra de Goethe. Como explicou numa carta a Liszt, em 1852, a sua intenção inicial era escrever uma sinfonia completa sobre o tema de Fausto, com vários andamentos, dos quais o primeiro retrataria o desespero de Fausto (correspondendo à Abertura efectivamente escrita), e o segundo (nunca composto) retrataria Margarida. Curiosamente, seria o próprio Liszt a concretizar esse plano na sua Sinfonia Fausto (que também hoje ouvimos).
A obra foi estreada em Dresden, a 22 de Julho de 1844, tendo tido uma recepção muito fria, tanto da parte do público como da crítica. Mais tarde, em 1855, e seguindo sugestões de Liszt, Wagner fez uma revisão substancial da obra. A versão definitiva seria estreada a 23 de Fevereiro desse ano, em Weimar, sob direcção do próprio Liszt.
Daniel Moreira, 2015