Error loading MacroEngine script (file: artista-header.cshtml)
  • Russa, descendente da era soviética, Gubaidulina demonstra – à semelhança de Alfred Schnittke – um espírito desassombrado pelas procuras de supremacia estética ou ideológica, de vanguarda ou pureza estilística, superando os complexos normativos que marcavam tantas escolas composicionais do seu tempo. A sua postura priorizou a procura de uma transparência invulgar e de uma expressão emocional, poética, mística e afectiva muito directa, pouco denunciadoras do rigor formal e conceptual da sua escrita e, com raras excepções, pouco alimentadas nos grandes circuitos da composição erudita. Elementos musicais e ritualísticos colhidos a ocidente e oriente, no plano sacro ou secular, confluem na sua linguagem como confluem os estratos musicais aparentemente antagónicos que conjuga, potenciando efeitos dramáticos sui generis.

    O Cântico do Sol foi composto em 1997, pelo 70º aniversário do violoncelista Mstislav Rostropovitch (que o estrearia em 1998), e esbate outro tipo de fronteiras – as de género musical – ao consubstanciar um híbrido entre uma obra coral sacra e um concerto para violoncelo (note-se que a compositora rejeita a classificação da peça como concerto). A peça tira partido de uma combinação original de instrumentos de percussão: tímpanos, crótalos, marimba, gongos de placa, tantã, copos, finger cymbals, jogo de sinos, vibrafone, sinos tubulares e celesta. A paleta tímbrica sugerida pelo efectivo instrumental deixa adivinhar a atmosfera luminosa, etérea e misteriosa que percorre a obra e lhe acentua o misticismo. Técnicas de execução inusitadas são também empregues na parte destinada ao violoncelista: é-lhe pedido que execute glissandos de altura indeterminada, que mude durante a peça a afinação do instrumento (scordatura), que toque com uma baqueta de madeira na zona do cavalete e até que toque gongo, flexatone (tocado com arco de contrabaixo) e bombo (friccionado nas extremidades da pele por uma baqueta de fricção especial). Todos estes pormenores potenciam e reflectem nos planos sónico e cénico o lado ritualístico intrínseco à concepção da peça e da sua performance.

    A obra baseia-se no Cântico do Irmão Sol (ou Cântico das Criaturas) de S. Francisco de Assis (1182-1226) e segue a estrutura do texto, adoptando uma configuração formal em quatro partes:

    1. Glorificação do Criador e Suas Criações – o Sol e a Lua;

    2. Glorificação do Criador, que fez os quatro elementos: ar, água, fogo e terra;

    3. Glorificação da vida;

    4. Glorificação da morte.

     

    Na primeira secção o violoncelo explora sobretudo movimentos amplos (em afirmativos glissandos de harmónicos sobre a corda grave, Dó) a que responde o coro em notas sustentadas nas vozes femininas (fortemente assentes em combinações de uníssonos e quintas). As vozes masculinas fazem enunciações salmódicas (em jeito de recitativo). Marca-se de imediato um dos traços sonoros mais cativantes da peça: a forma como os instrumentos brilham pelas suas características tímbricas e se ligam, se metamorfoseiam ou se opõem entre si por meio delas também.

    A segunda secção, relativa aos quatro elementos, é mais agitada, trazendo uma expressão enérgica em que são proeminentes os glissandos amplos de violoncelo e marimba, cada vez mais exuberantes perante os salmos do coro, que alternam com acordes sustentados. O violoncelo ganha depois o protagonismo numa expressão mais lírica, emotiva, subtilmente acompanhado por vibrafone e interrompido energicamente pelo coro que repete “Altissimo”, aos poucos provocando nova construção de tensão até desembocar no momento-chave, no final desta secção: surge um acorde maior luminoso, sustentado no coro, com oscilações de altura, que o violoncelista marca solenemente com ataques de gongo.

    Um reaproveitamento da série de harmónicos inicial (desta vez não em glissando mas com as notas entrecortadas e em jeito de lamento) assinala o início da transição para a parte do cântico mais intimista e focada no sofrimento humano (a partir de “Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por teu amor”). Aí, o coro canta a sua oração numa textura assente em acordes. Uma pausa geral precede a alusão musical à Morte, com a metamorfose do corpo consubstanciada na metáfora musical que é a “metamorfose” do som da corda mais grave do violoncelo. O solista, sem acompanhamento, faz reafinações sucessivas – ouvir-se-á a série de harmónicos tocada em altura cada vez mais baixa, propiciando um ambiente de introspecção absoluta. A metamorfose é também do próprio músico, que abandona as técnicas do violoncelo assumindo progressivamente o papel de percussionista ao tocar flexatone e bombo. No momento em que a morte corporal é cantada lugubremente pelo coro, o violoncelo volta a ganhar relevo, numa textura que o metamorfoseia habilmente com as vozes femininas que cantam sem texto (e aqui é irresistível a imagem de aproximação ao plano divino representado pelas vozes). Um acorde maior do coro assinala mais uma vez um momento-chave: o momento da ascensão da alma, que dá lugar a vocalizações celestiais em figuras curtas, acompanhadas do cintilar dos instrumentos, numa sugestão de paz e redenção que termina a obra em clima transcendente.

     


    Pedro Almeida, 2016 

x
A Fundação Casa da Música usa cookies para melhorar a sua experiência de navegação, a segurança e o desempenho do website. A Fundação pode também utilizar cookies para partilha de informação em redes sociais e para apresentar mensagens e anúncios publicitários, à medida dos seus interesses, tanto na nossa página como noutras. Para obter mais informações ou alterar as suas preferências, prima o botão "Política de Privacidade" abaixo.

Para obter mais informações sobre cookies e o processamento dos seus dados pessoais, consulte a nossa Política de Privacidade e Cookies.
A qualquer altura pode alterar as suas definições de cookies através do link na parte inferior da página.

ACEITAR COOKIES POLÍTICA DE PRIVACIDADE