-
1. Préambule
2. Pierrot
3. Arlequin
4. Valse noble
5. Eusebius
6. Florestan
7. Coquette
8. Replique
9. Sphinxs
10. Papillons
11. ASCH – SCHA. Lettres dansantes
12. Chiarina
13. Chopin
14. Estrella
15. Reconnaisance
16. Pantalon et Columbine
17. Valse allemande
18. Paganini
19. Aveu
20. Promenade
21. Pause
22. Marche des Davidsbündler contre les Philistins
“Carnaval é uma obra feita de fragmentos que, salvo três ou quatro excepções, se baseiam nas notas A S C H, que são as letras de uma pequena cidade na Boémia onde tive uma amiga artista. Estas mesmas letras, por coincidência, são as únicas do alfabeto musical que formam parte do meu nome [SCHumAnn]. Acrescentei alguns títulos explicativos, mas será que a música não fala por si? Todo o conjunto é completamente desprovido de valor artístico; mas o que me parece interessante são os diferentes estados de alma que eu posso caracterizar de forma variada.” É desta forma que Robert Schumann explica ao pianista e compositor Ignaz Moscheles (1794-1870) a génese de Carnaval.
A “amiga artista” era a jovem aristocrata Ernestina von Fricken, que se tornou a musa inspiradora do ciclo de 22 pequenas peças intitulado Carnaval, composto entre Setembro de 1834 e 1835, época em que ela e Schumann mantiveram uma relação amorosa. O subtítulo, Scènes mignonnes sur quatre notes (Pequenas cenas com quatro notas), vem de encontro à explicação que o compositor dá a Moscheles: as letras A S C H (que na notação anglo-saxónica correspondem às notas Lá, Mi bemol, Dó e Si) são as quatro notas em que se baseia a quase totalidade das peças que constituem o ciclo.
Carnaval op. 9 não é a obra mais profunda nem a mais significativa na produção pianística de Schumann. Mas a sua ingenuidade harmónica, a variedade rítmica conseguida através da utilização ocasional de métricas dançantes, a diversidade e a imprevisibilidade formais conferem-lhe um charme especial. O ciclo foi estreado por Franz Liszt, em Leipzig, a 30 de Março de 1840, tendo obtido uma recepção muito fria por parte do público. Clara Wieck Schumann tocou-o pela primeira vez em Viena, a 7 de Fevereiro de 1857.
Schumann retrata um baile de máscaras onde convivem diversas personagens provenientes de ambientes diferentes. O desfile dos intervenientes no baile começa com uma sequência de acordes majestosos e enérgicos, Préambule. O andamento rápido da secção central faz lembrar uma dança desenfreada. À Commedia dell’arte italiana o compositor vai buscar o sonhador Pierrot, o irrequieto Arlequin, e o par Pantalon e Columbine, protagonistas de um delicioso trecho que alterna discussões ferozes com conversas amenas. Florestan e Eusebius personificam os dois alter-egos de Schumann. “Florestan é um desses músicos estranhos que pressente o futuro e persegue tudo o que é novo e extraordinário. Eusebius, pelo contrário, é meticuloso, introspectivo e delicado. Florestan é um turbilhão, enquanto Eusebius é a personificação da delicadeza. Ambos constituem a minha dupla natureza”, explica Schumann. O comentário musical destas duas figuras mostra um hesitante e indeciso Eusebius, que Schumann traduz por quiálteras de sete notas, quintinas e tercinas (figuras rítmicas irregulares, todas); o ímpeto, o ardor e a vivacidade de Florestan são representados por uma valsa. Schumann cita em Florestan o tema da primeira peça do ciclo para piano Papillons op. 2 (está, aliás, escrita na partitura sobre o tema a palavra Papillon). É muito provável que se trate de uma citação autobiográfica, uma vez que Papillons foi a primeira obra que Schumann publicou e, consequentemente, foi aquela que lhe deu os primeiros proventos monetários como compositor.
A jovem Clara Wieck, de 15 anos de idade, é retratada na peça Chiarina. Já Estrella é a imagem de Ernestina von Flicken. Para Clara, Schumann escreve uma belíssima melodia que, num ritmo de mazurka, transborda ternura e delicadeza. ParaErnestinacria uma valsa apaixonada onde sobressai alguma impulsividade.
Chopin e Paganini também entram no baile de máscaras. O compositor polaco é evocado num trecho breve onde uma frase cantabile é sustentada por um conjunto de longos arpejos que percorrem o teclado. A repetição da peça na dinâmica pianissimo confere-lhe uma dimensão etérea e sonhadora. Já o violinista italiano interrompe uma elegante e graciosa Valse allemande com uma das peças tecnicamente mais difíceis do ciclo, pela precisão e equilíbrio sonoro que exige do pianista.
Antes dos Papillons aparecerem a deambular pelo baile e desaparecerem num ápice, Schumann intercala as três combinações musicais possíveis das quatro letras da palavra Asch: SCHA – AsCH – ASCH, que correspondem às notas Mi bemol, Dó, Si, Lá – Lá bemol, Dó, Si – Lá, Mi bemol, Dó, Si. Dá-lhes o nome de Sphinxs e, para as notar, serve-se de figuras rítmicas antigas, actualmente em desuso: as ‘breves’. Uma valsa rápida formada por secções curtas, cada uma delas repetida várias vezes, evoca a segunda e a terceira combinações numa peça intitulada ASCH – SCHA. Lettres dansantes.
O Carnaval op. 9 inclui ainda uma mulher sedutora que usa e abusa de olhares fugazes, de suspiros ardentes e de gargalhadas insinuantes – Coquette, que em Replique parece conversar fugazmente com um dos seus admiradores. Reconnaisance é a celebração do reencontro. Uma melodia bem-disposta é acompanhada por um ritmo de polonaise, mas com o polegar da mão direita a duplicar e/ou quadruplicar cada uma das notas da melodia. Na secção central há um belíssimo diálogo entre as vozes aguda e grave com alternância de cada uma delas, numa espécie de pergunta-resposta. Aveu é, de acordo com o compositor, uma declaração de amor durante a qual o amante se ajoelha aos pés da amada. Depois de declararem o seu amor, os dois vão dar um passeio, Promenade, ao som de uma valsa bem ao estilo de Chopin. O passeio é interrompido de forma abrupta pela Pause e, imediatamente a seguir à citação do tema da secção central do Préambule, a obra termina com a Marche des Davidsbündler contre les Philistins que, surpreendentemente, está escrita em compasso ternário. Schumann compõe uma marcha enérgica, festiva e confiante para encenar musicalmente uma luta entre os Filisteus, que simbolizavam os músicos antiquados, os ‘botas-de-elástico’, e os Davidsbündler (que se pode traduzir por Liga de David), que eram aqueles que defendiam a nova música, a música contemporânea. Estes Davidsbündler foram criados pelo compositor nos seus escritos sobre música. Surgiram num ensaio musical publicado em 1833 no jornal Der Komet (O Cometa) e voltaram a aparecer no ano seguinte, na revista que ele fundou, a Neue Zeitschrift für Musik (Nova Revista sobre Música). Voltando ao ciclo para piano, a marcha dos Davidsbündler é interrompida por duas vezes pela dança Grossvater, denominada por Schumann de “tema do séc. XVII”, e que representa os Filisteus. A luta é impiedosa, mas os Filisteus acabam por ser derrotados. O Più stretto da coda confirma o triunfo completo e inequívoco dos defensores do progresso.
Ana Maria Liberal, 2017