-
Foi aos 11 anos de idade, quando cantava no coro da Igreja Paroquial de St. Marylebone, em Londres, que Stokowksi descobriu o órgão, logo se apaixonando, muito em particular, pela música de Bach para esse instrumento. A partir de 1902 (com 20 anos de idade), trabalhou como organista e mestre de coro na Igreja de St. James, em Piccadilly, e quando rumou, três anos depois, para os Estados Unidos, assumiu uma posição comparável na Igreja de São Bartolomeu, em Nova Iorque.
Mas seria como maestro, claro, que Stokowski mais se notabilizaria, sobretudo com o seu trabalho prolongado na Orquestra de Filadélfia, de 1912 a 1936. Aí introduziria muitas práticas inovadoras – na disposição dos instrumentos em palco, por exemplo –, criando um som quente, cheio, que ainda hoje se conhece como o “som de Filadélfia”.
À medida que se dedicou mais à orquestra, Stokowksi começou a sentir saudades da música de Bach que tocara na sua juventude. É preciso recordar que, naquela altura, eram poucas as obras de Bach que faziam parte regular do repertório das orquestras: praticamente só os Concertos Brandeburgueses e as Suites orquestrais. O resto da sua música era pouco conhecida do grande público. É nesse contexto que, a partir da década de 1920, Stokowksi se dedicou a fazer arranjos (ou transcrições) para orquestra de música de Bach, sobretudo de peças originalmente compostas para órgão. Muitos desses arranjos tornaram-se famosos – em especial o da Toccata e Fuga em Ré menor, que se ouve no início do filme Fantasia, da Walt Disney –, muito contribuindo para tornar a música de Bach mais acessível ao grande público. No total, Stokowski fez cerca de cinquenta arranjos orquestrais de peças de Bach, dos quais ouvimos hoje dois dos menos conhecidos.
Johann Sebastian Bach / Leopold Stokowski
Fantasia e Fuga em Sol menor, BWV 542
A maior parte da música para órgão de J. S. Bach é conhecida não nos manuscritos originais, mas em cópias feitas pelos alunos do compositor. Por essa razão, é frequentemente difícil precisar a cronologia dessas obras. É o que acontece com a Fantasia e Fuga em Sol menor: uns dizem que as duas partes da obra – a fantasia e a fuga – são de épocas diferentes, tendo a fuga sido provavelmente composta entre 1709 e 1713, e a fantasia mais tarde, talvez até depois de 1717; outros dizem que Bach compôs logo as duas partes como uma unidade, em 1720, quando concorreu a um emprego em Hamburgo.
Seja como for, o emparelhamento de uma fantasia e uma fuga é prática comum no Barroco: a primeira com um carácter mais livre e espontâneo; a segunda uma construção contrapontística muito rigorosa. Neste caso, a fantasia apresenta, fundamentalmente, duas ideias musicais, que se alternam segundo o esquema ABABA: a primeira ideia (A) é em estilo de toccata, com acordes poderosos e notas rápidas, subindo e descendo ao ritmo de uma improvisação; a segunda (B) é completamente contrastante, pelo carácter delicado e mais cantabile. É com muita eficácia que Stokowski traduz orquestralmente esse contraste: nas partes A, ouvimos os acordes poderosos tocados pelos sopros (incluindo trombones) e pelas cordas mais graves (contrabaixos, violoncelos e violas), enquanto os violinos, todos juntos, se encarregam das notas rápidas; nas partes B, a orquestração é muito mais ligeira, começando apenas com solistas nas madeiras (destacando-se, primeiro, o oboé, e depois a flauta). Quanto à fuga, Stokowski joga também com o contraste entre diferentes grupos instrumentais, começando apenas com as cordas, dando depois destaque às madeiras, e fazendo todos os grupos (incluindo também os metais) juntarem-se no clímax final.
Noutro sentido, porém, a orquestração de Stokowski (estreada pela Orquestra de Filadélfia, a 30 de Dezembro de 1926) é completamente infiel ao original. Desde logo, a dimensão gigantesca da orquestra (por exemplo com 4 flautas, 4 trompetes, uma enorme secção de cordas e 2 harpas) é completamente alheia ao que era a prática no tempo de Bach, em que as orquestras eram muito mais pequenas e muitos dos instrumentos nem sequer existiam (ou eram muito diferentes). Essa dimensão dá um peso à orquestração que pouco tem a ver com a sonoridade original das orquestras barrocas, mas que, pelo contrário, é próximo do som da orquestra romântica e moderna que Stokowski praticava enquanto maestro (o tal “som de Filadélfia”). É fácil, por isso, criticar este tipo de orquestrações, em especial nos nossos dias – em que nos habituámos a interpretações “historicamente informadas” –, rejeitando-as como indevidamente grandiloquentes, românticas, ou até popularuchas. Mas não será justo também reconhecer, para além da importância histórica do trabalho de Stokowski, que arranjos como este não deixam de lançar uma outra luz, também plena de interesse, sobre a obra de Bach?
Daniel Moreira, 2016