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1. Fausto
2. Margarida
3. Mefistófeles
Liszt compôs a Sinfonia Fausto em 1854, durante a sua estadia em Weimar, a cidade em que Goethe tinha vivido. Na verdade, a sua nomeação como Kappelmeister da Corte de Weimar tinha como propósito reavivar o esplendor artístico que a cidade vivera no final do século XVIII e início do século XIX, justamente quando Goethe aí vivia, juntamente com outros importantes autores da época, como Schiller e Herder. Para o Grão-Duque de Weimar, Liszt era o verdadeiro sucessor de Goethe.
Na verdade, Liszt esteve em permanente contacto com o legado goethiano assim que se fixou na cidade, em 1848. Logo em 1849, celebrou-se um Festival Goethe, assinalando o centenário do seu nascimento; e, um ano depois, um Festival Herder-Goethe, aquando do centenário do nascimento de Herder. Liszt tomou parte activa em ambas as celebrações (e outras do mesmo tipo). Além disso, em 1852, Liszt dirigiu uma série de obras baseadas na temática de Fausto: a Abertura Fausto, de Wagner; a Terceira Parte da oratória de Schumann, Szenen aus Goethes Faust; La Damnation de Faust, de Berlioz; e a ópera Fausto, de Spohr. Todo este contexto parece ter sido propício a que Liszt tenha também vontade para compor uma obra sobre temática faustiana.
Na verdade, há muito que Liszt acalentava esse desejo. O interesse — verdadeira paixão — pela obra de Goethe surgiu depois de Berlioz lha ter dado a conhecer, em 1830, na tradução francesa de Gérard de Nerval. Ao longo da década de 1840, Liszt começou a compor os primeiros esboços para uma obra sobre Fausto. No entanto, só em 1854 é que se dedicaria em pleno à sua composição, acabando por concluí-la num período extremamente curto, de apenas dois meses. Assim nasceu a Sinfonia Fausto.
A intenção de Liszt não foi representar a sucessão de acontecimentos na narrativa de Goethe, mas caracterizar musicalmente cada um dos protagonistas. A obra divide-se, assim, em três andamentos: um dedicado a Fausto, outro a Margarida, outro a Mefistófeles.
O primeiro andamento representa, então, as diferentes facetas da complexa personalidade de Fausto, com todas as suas contradições e interrogações. A introdução, lenta, não deixa de evocar o início da Abertura de Wagner: é igualmente escura e desolada, e representa também a frustração e depressão em que Fausto inicialmente se encontra. Um primeiro motivo nas cordas introduz um ambiente enigmático; segue-se um motivo lamentoso, bem expressivo, no oboé. Alguns minutos depois, surge o tema principal do andamento, de carácter agitado e apaixonado, nas cordas, representando a força vital de Fausto, sempre inquieto e impaciente, em busca de novas experiências. Aparecem ainda mais dois temas: um de carácter mais pacífico e afectuoso, sugerindo a paixão de Fausto por Margarida; e uma marcha triunfal nos metais, de carácter heróico.
O segundo andamento é muito mais simples. Dá-nos uma imagem de Margarida como uma mulher delicada, inocente e angelical — um retrato unidimensional, estático, ao contrário do retrato complexo e dinâmico de Fausto. O andamento é também notável pela sua orquestração. Numa concepção incrivelmente moderna, Liszt trata a orquestra como a soma de muitos pequenos ensembles. De facto, grande parte do andamento é orquestrado para pequenos grupos: por exemplo, o tema principal aparece inicialmente no oboé, com acompanhamento de apenas uma viola; depois, numa flauta e num clarinete, acompanhados por um violino e dois fagotes; perto do final do andamento, num quarteto de violinos solistas. O resultado é uma textura de grande claridade e delicadeza.
No terceiro andamento, dedicado a Mefistófeles, Liszt não apresenta nenhum tema novo. Em vez disso, o que ouvimos é uma distorção grotesca dos temas de Fausto, que tínhamos ouvido no primeiro andamento. Esses temas são cruelmente transformados até serem literalmente feitos em pedaços, como que se fossem arrastados para o círculo do inferno. A solução do compositor é genial e inteiramente lógica: Mefistófeles é o espírito da negação e, como tal, nada pode criar, apenas destruir e vilipendiar o que existe. Só Margarida é protegida dessa mutilação: o seu tema reaparece intacto, mostrando que o Diabo não tem qualquer poder sobre ela.
A Sinfonia foi apenas estreada três anos mais tarde, aquando da inauguração, em Weimar, do monumento a Goethe e Schiller. Para essa ocasião, Liszt acrescentou uma Coda Final, intitulada Chorus Mysthicus, que põe em música o final da Segunda Parte da tragédia de Goethe. O texto, cantado por um coro masculino e um tenor solista, revela o destino final de Fausto, após a sua morte: a sua plena redenção, salvo pela graça divina, que premeia a sua permanente busca pelas esferas superiores da vida, mesmo que errando nesse caminho e sendo momentaneamente atraído para domínios mais obscuros (demoníacos). A obra termina, assim, em apoteose mística. Ouvimos hoje a Sinfonia, contudo, na sua versão original, sem esse coro final. De qualquer modo, a conclusão da versão original sugere já a redenção de Fausto, à medida que a música sobe no registo e se torna cada vez mais transparente, sugerindo a ascensão ao Céu da sua alma.
Daniel Moreira, 2015