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1. De l’aube a midi sur la mer
2. Jeux de vagues
3. Dialogue du vent et de la mer
Ondulando em vai-e-vem no cenário de fundo do programa de hoje tem estado o nome de Claude Debussy, autor da obra em que o concerto desagua. O Mar, cuja escrita foi começada dois anos depois da carta enviada a Dukas e terminada em 1905 – sempre em terra firme mas de ouvidos postos em “memórias inomináveis” –, é hoje tida como uma das mais sugestivas explorações sonoras de Debussy no domínio orquestral. A partitura original exibia na capa a pintura de uma onda do mar (inspirada na Grande Onda de Kanagawa pintada pelo japonês Katsushika Hokusai). A partitura de Debussy, contudo, não retrata o mar em sentido apenas pictórico, abrindo espaço para uma experiência sensorial fortíssima e surgindo também tingida de todo o mistério que o mar traz consigo, por entre o colorido orquestral que permanentemente se dissolve e se renova. Por outro lado, estes “três esboços sinfónicos” constituem, de entre as peças orquestrais de Debussy, a mais relacionável com o modelo sinfónico, pela sua configuração em três andamentos (comparável com a disposição habitual rápido-lento-rápido): “Da alvorada ao meio-dia no mar” (cujo título provisório era “Mar belo das ilhas sanguinárias”), “Jogo de ondas” e “Diálogo entre o vento e o mar” (em que se recupera material do andamento inicial).
Após a lenta introdução, com material melódico ascendente não muito diferente da que abre o prelúdio para piano A Catedral Submersa, a manhã é evocada na visão debussiana, pontuada por arabescos nas madeiras, figuras ondulantes passando entre os vários naipes da orquestra, células temáticas de base pentatónica ou modal, tremolos de cordas e intervenções dos timbres cuidadosamente escolhidos da percussão, todos contribuindo para um quadro particularmente realista e luminoso. No “Jogo de ondas”, movimento e fluidez são o pano de fundo para um espectáculo em que se sucedem sonoridades e motivos fugazes com invulgar variedade. No andamento final, a oposição entre vento e mar é sugerida pelas células enérgicas e repetitivas, pelos desenhos voláteis, contrastando com o mágico momento da melodia-refrão no oboé. A fúria acaba em apoteose, com o naipe de metais em jeito de coral triunfante e a percussão a sublinhar na perfeição o último fôlego das águas.
Tal como aconteceria com Paraísos Artificiais de Freitas Branco, O Mar encontrou incompreensão e resistência numa primeira fase: “alguém duvida por um momento que Debussy não escreveria uma coisa tão caótica, sem significado, cacofónica e ingramatical, se soubesse inventar uma melodia?”, lia-se em 1907 no New York Post, cujos leitores ainda ficariam avisados de que “nem a orquestração é particularmente notável”. Mais espanto ainda causa o comentário de Ravel, admirador de Debussy e autor da música que abre o concerto de hoje: “se tivesse tempo, reorquestraria O Mar”. Ironia? Talvez. A verdade é que os efeitos evocativos do mar colorido e misterioso em que Debussy mergulhou têm encantado gerações de melómanos e não só: têm inspirado sucessivas gerações de compositores e, em especial medida, uma grande parte do repertório da música para cinema, assim dando ao sonho expresso por Debussy a Dukas a dimensão do real quotidiano.
Pedro Almeida, 2016