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No Verão de 1897, um jovem intelectual, músico e pintor de origem judaica, de educação católica mas convertido já em idade adulta ao Protestantismo, compõe o seu primeiro quarteto em Ré maior, obra de largas linhas românticas e forte influência brahmsiana. Arnold Schoenberg (1874-1951), discípulo do compositor Zemlinsky e membro da Associação dos Músicos de Viena (da qual Brahms foi presidente honorário), dava, assim, os primeiros passos numa profissão alternativa ao trabalho como bancário e maestro do Grupo Coral dos Metalúrgicos de Stockerau. No ano seguinte este quarteto será tocado na Associação com bastante sucesso. Mas a execução dos seus Lieder nesse ano anuncia já o carácter escandaloso que acompanhará grande parte da sua carreira. Em 1899 compõe o sexteto Noite Transfigurada, recusado pela mesma Associação, executado publicamente somente em 1903: às influências de Brahms juntava-se o poder dramático e harmónico do wagnerismo, coisa inconciliável para os músicos e críticos tradicionais, fortemente entrincheirados nas respectivas fileiras pseudo-estéticas.
Segundo palavras do próprio Schoenberg, o sexteto Noite Transfigurada – Verklärte Nacht op.4 – pretende simplesmente representar musicalmente a natureza e os sentimentos humanos. É uma peça programática, escrita no decorrer de três intensas semanas de Setembro, tendo por base um poema de Richard Dehmel: numa noite de luar intenso, o céu livre de nuvens, um casal apaixonado caminha pelo bosque olhando a lua; a mulher, grávida, confessa o seu tormento por ter dentro de si o fruto de outro homem, uma criança que lhe lembrará sempre esse pecado. O homem responde: “Vê como cintila o céu claro! / Há um brilho à volta de tudo. / Caminhas comigo sobre um mar frio, / mas um calor profundo irradia / de ti para mim, de mim para ti. / Ele vai transfigurar esta criança estranha: / Tu vais dar-ma, e de mim dar-lhe vida; / Tu deste-me esse brilho, / Tu fizeste de mim também uma criança.”
Esta obra de Schoenberg é profundamente descritiva, rica de ambientes e efeitos conseguidos através de uma exploração requintada dos instrumentos, do fraseado e da harmonia. Construída num único andamento, à imagem da Sonata de Liszt, é também marcadamente dramática, usando técnicas de desenvolvimento motívico próximas dos leitmotiv wagnerianos, recordando-nos a par e passo o carácter dos personagens e as diferentes facetas do drama. Noite Transfigurada é, ainda, uma obra ímpar no desenvolvimento de técnicas de contraponto, mostrando um jovem Schoenberg já conhecedor dos intrincados labirintos do relacionamento melódico entre os diversos instrumentos, ao serviço de uma intensidade levada, muitas vezes, aos limites da expressão dramática. O rendilhado das frases, o simbolismo dos motivos e a expressividade harmónica e instrumental remetem-nos para o Jugendstyl dos seus contemporâneos da Secession, na transfiguração dos meios académicos tradicionais numa arte fortemente simbólica, tantas vezes também labiríntica de formas, ornamentos e cores. E Schoenberg foi, também, um pintor expressionista, tendo obtido assinalável êxito em anos posteriores.
Deste sexteto, Schoenberg fez duas versões para orquestra de cordas em 1917 e 1943, respectivamente, sendo neste concerto tocada a segunda dessas versões.
Francisco Monteiro, 2007