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Abertura
Acto I
1. Cena: A árvore de Natal
2. Marcha
3. Galope das crianças e entrada dos pais
4. Cena dançante: entrada de Drosselmeyer
5. Cena e Dança Gross-Vater
6. Cena: Clara e o Quebra-Nozes
7. Cena: A Batalha
8. Cena: Um pinhal no Inverno
9. Valsa dos Flocos de Neve
Acto II
10. Cena: O castelo mágico na Terra dos Doces
11. Cena: Clara e o príncipe Quebra-Nozes
12. Divertimento
a) Chocolate (Dança espanhola)
b) Café (Dança árabe)
c) Chá (Dança chinesa)
d) Trépak (Dança russa)
e) Dança dos Mirlitons
f) A mãe Gigogne e os polichinelos
13. Valsa das Flores
14. Pas de deux: A Fada do Açúcar e o príncipe Orgeat - Tarantella (Var. I) - Dança da Fada do Açúcar (Var. II) - Coda
15. Valsa final e apoteose
O Romantismo foi um período de grande valorização da música instrumental. Nesse contexto, foi criada, por compositores e críticos, uma hierarquia que relacionava o nível de abstracção da música com o seu valor artístico. Assim, quanto mais abstracta fosse a obra, mais próxima se encontraria de uma verdade essencial. Um exemplo claro dessa metafísica da música instrumental é a valorização das sinfonias de Brahms em detrimento dos dramas musicais de Wagner promovida pelo crítico vienense Eduard Hanslick. Contudo, uma divisão clara entre géneros absolutos torna-se muito problemática. Por um lado, muitas sinfonias integraram elementos da música programática, remetendo para realidades extra-musicais. Por outro lado, obras de palco foram autonomizadas do seu contexto e apresentadas em salas de concerto. Isso complica a narrativa de autonomia estética que forma a base da crítica romântica. Assim, uma obra ganharia autonomia através da travessia do palco para a sala de concertos, esse espaço para-religioso do Romantismo. O Quebra-Nozes é um bom exemplo dessa prática.
O Quebra-Nozes foi concebido por Tchaikovski como um bailado para ser apresentado em paralelo à sua ópera Iolanta. O enredo da obra foi inspirado no conto O Quebra-Nozes e o rei dos ratos, escrito em 1818 pelo alemão Ernst Theodor Amadeus Hoffmann. E. T. A. Hoffmann era também compositor e crítico musical, tendo a sua obra servido de inspiração para outro importante bailado romântico de inspiração fantástica – Copélia. Contudo, a versão que serviu de base para Tchaikovski e os coreógrafos Marius Petipa e Lev Ivanov foi inspirada por Alexandre Dumas (pai), que reviu o conto de Hoffmann em 1844. Neste contexto, o Romantismo fantástico alemão chegou à Rússia Imperial através de França, revelando a valorização da cultura literária francesa empreendida pela corte russa. No entanto, a produção do bailado não foi simples. Ainda antes da sua apresentação, Tchaikovski agrupou alguns dos números numa suite de danças que estreou em São Petersburgo, em Março de 1892, num concerto promovido pela Sociedade Musical da Rússia (uma agremiação dinamizada por Anton Rubinstein cujo objectivo era elevar o nível musical do Império através da criação de escolas de música e de apresentações). A suite O Quebra-Nozes teve tanto sucesso que rapidamente integrou o repertório das principais orquestras da época. Isso não se passou com o bailado, cuja popularidade atingiu o auge na segunda metade do século XX.
A influência francesa na cultura europeia do século XIX não se restringiu à literatura. Num período de coabitação entre as escolas italiana e francesa de bailado, o Império Russo apresenta uma interessante relação entre ambas. A partir do século XVIII, diversos mestres de dança da Europa Ocidental, sobretudo franceses, desempenharam cargos importantes no Bailado Imperial e transformaram o ensino da dança teatral nesse território. Por outro lado, diversas primeiras-bailarinas eram italianas. O percurso de Marius Petipa, um dos coreógrafos de O Quebra-Nozes, é indicador das transformações operadas no bailado romântico russo. Filho do mestre de dança francês Jean Petipa, Marius seguiu o pai nas suas deambulações pela Europa. Residiu em Bruxelas, onde Jean era primeiro-bailarino e mestre de dança no Théâtre de la Monnaie. Nessa cidade, frequentou o conservatório e estudou violino. Após estadias prolongadas em Bordéus e Madrid, Marius Petipa fixou-se em São Petersburgo em 1847. Posteriormente, o seu pai também migrou para essa cidade, onde leccionou na Escola Imperial de Bailado. A carreira de bailarino é de curta duração, mas preparou Marius para uma carreira de coreógrafo e professor de bailado. Quando começou a desempenhar essa actividade, o bailado na Rússia atravessava um período complicado. Contudo, a sua competição com o coreógrafo Arthur Saint-Léon, na década de 60, na criação de bailados cada vez mais espectaculares ajudou o Bailado Imperial a recuperar o seu prestígio e lançou as bases para este se constituir enquanto referência mundial durante muito tempo. Após desempenhar a função de Segundo Mestre de Dança por alguns anos, Petipa ascendeu ao cargo de Primeiro Mestre de Dança em 1871. Ao longo da sua carreira coreografou alguns dos mais importantes bailados da história, entre os quais O Quebra-Nozes. Contudo, a autoria dessa coreografia tem sido debatida, porque Lev Ivanov é dado como o principal coreógrafo em diversas fontes. Nessa altura, Ivanov era Segundo Mestre de Dança na companhia, após ter sido formado na Escola Imperial de Bailado e dançado com esta durante vários anos. Devido a problemas de saúde de Petipa durante a produção de O Quebra-Nozes, pensa-se que terá sido Ivanov a coreografar grande parte do bailado. Todavia, as fontes históricas não estão de acordo em relação ao papel desempenhado por ambos. O guarda-roupa esteve a cargo de Ivan Vsevolozhsky, então director dos Teatros Imperiais, e o cenógrafo foi Konstantin Ivanov.
O enredo de O Quebra-Nozes varia de acordo com a produção e com as intenções do coreógrafo, o que revela a fluidez e mutabilidade do género. A história passa-se durante o Natal e começa com uma família a decorar a árvore para as festividades. Posteriormente, Drosselmeyer, um mágico, construtor de brinquedos e padrinho da protagonista Clara, entra e distribui brinquedos pelas crianças.Entre estes encontram-se bonecos dançarinos em tamanho real, que são guardados, o que desagrada às crianças. Drosselmeyer também lhes oferece um quebra-nozes com forma humana, que é partido acidentalmente por Fritz, irmão de Clara. À meia-noite, quando a família se encontra a dormir, Clara entra na sala em busca do Quebra-Nozes e encontra Drosselmeyer, que orienta um estranho ritual em torno da árvore de Natal: uma batalha entre ratos e biscoitos de gengibre com forma humana. Os biscoitos são comandados pelo Quebra-Nozes, que cresceu até atingir o tamanho de uma pessoa. Na refrega, o Quebra-Nozes é ferido e, com a ajuda de Clara, vence o Rei dos Ratos. No segundo quadro do acto, o Quebra-Nozes revela-se como príncipe e leva Clara a passear num pinhal, onde os flocos de neve os rodeiam e dançam. O segundo acto apresenta uma viagem de Clara e do príncipe pela Terra dos Doces, governada pela Fada do Açúcar. Como agradecimento pelo feito de Clara e pelo regresso do príncipe ao seu reino, as guloseimas de toda a terra dançam para os protagonistas, que se juntam a estes numa valsa até embarcarem num trenó puxado por renas.
O Quebra-Nozes foi escrito entre 1891 e 1892 e resultou de uma encomenda de Ivan Vsevolozhsky, que pensou aproveitar o sucesso do bailado A Bela Adormecida. Estreou em São Petersburgo a 18 de Dezembro de 1892 e não teve a recepção calorosa dos anteriores bailados de Tchaikovski. Dada a sua temática, as personagens infantis foram interpretadas por alunos da Escola Imperial de Bailado, e ainda se recorre a jovens bailarinos para esses papéis. Contudo, essa escolha não foi pacífica quando da estreia e alguns críticos manifestaram desagrado pelo destaque dado a crianças, apesar de o enredo ser uma história infantil. Possivelmente, estariam habituados a bailados com maior participação dos bailarinos principais e as cenas de conjunto defraudaram essa expectativa. Outras críticas negativas abordaram a fragilidade do enredo, a fraca qualidade do aparato cénico e o excesso de gordura de alguns intervenientes.
A abertura do primeiro acto tem um carácter leve e lúdico que prepara o público para a acção dramática. A cena na casa de família mantém essa atmosfera brincalhona, interpolando uma fanfarra com um contexto mais lírico. Uma secção mais solene e de ritmo pontuado antecede a estilização de uma dança popular, a que se segue a entrada de Drosselmeyer. Assim, marchas, polcas e galopes transitam do contexto semi¬público do baile para o palco. A entrada de Drosselmeyer é caracterizada por uma mudança de atmosfera, na qual se detecta um certo mistério. O carácter rapsódico do bailado encontra-se bem patente na cena dos bailarinos mecânicos construídos por Drosselmeyer, quando a música se torna ritmicamente mais regular para caracterizar as personagens. Danças vivas, momentos mais líricos com transformações rápidas de carácter, tudo serve para ilustrar a narrativa, enfatizando os aspectos plásticos da coreografia. O tratamento musical da cena seguinte cria uma atmosfera de mistério, aumentando gradualmente a tensão. A batalha entre os soldados de chumbo, chefiados pelo Quebra-Nozes, e os ratos sobrepõe diversas camadas sonoras, acentuando o movimento e pontuando enfaticamente os principais momentos da coreografia. O retorno à calma prepara a viagem do príncipe e de Clara, cuja paixão é materializada no bosque. O corpo de baile reaparece para uma das passagens mais espectaculares do bailado, a Valsa dos Flocos de Neve, que encerra o primeiro acto.
A abertura do segundo acto tem um carácter bucólico de romanza, em que o melodismo é valorizado. A delicadeza e o ambiente da miniatura pontificam na abertura das portas de Confiturembürg, o domínio da Fada do Açúcar. A celesta, um instrumento cujo timbre se assemelha a uma caixa de música, contribui para criar uma atmosfera etérea e irreal de sonho. Após a recepção aos protagonistas, segue-se um conjunto de danças características associadas a guloseimas. O chocolate é representado pela dança espanhola, acompanhada por castanholas. Segue-se o café, com o exotismo modal de uma dança árabe que valoriza o timbre dos sopros, sobretudo o oboé. A dança chinesa, baseada num ostinato, representa o chá e é um dos trechos mais conhecidos do bailado, bem como o número seguinte, Trépak – uma dança tradicional ucraniana estilizada por Tchaikovski e coreografada de forma acrobática. Segue-se a famosíssima Dança dos Mirlitons, cuja graça e leveza a transformaram num emblema do bailado. É notório o contraste com a Dança dos Polichinelos, centrada na apresentação de uma rusticidade vivaz. A harpa é colocada em evidência na Valsa das Flores, uma dança de grupo que apresenta as personagens num verdadeiro exercício de sincronismo e delicadeza. Seguem-se o pas de deux da Fada do Açúcar com o seu príncipe, um momento de forte intensidade expressiva, com longas linhas melódicas de resolução diferida, dando lugar a duas variações a solo. Na primeira, o príncipe dança uma tarantela italiana estilizada pelo recurso às pandeiretas. Seguidamente, a Fada dança as suas famosas variações, acompanhada pela celesta e pelo clarinete. Após a coda a pares, entra o corpo de bailado para a apoteose: uma delicada valsa ao som da qual as personagens desfilam. Na versão original, o final consistia num enxame de abelhas guardando a sua propriedade.
Graças às críticas negativas, O Quebra-Nozes entrou num período de obscuridade que durou até à sua recuperação em 1954 por George Balanchine, coreógrafo que nessa época dirigia o New York City Ballet, uma importante companhia americana. Balanchine foi dos últimos alunos da Escola de Bailado Imperial de São Petersburgo e integrou os Ballets russes, a companhia dirigida por Sergei Diaghilev que misturou o modernismo e o exotismo com a disciplina férrea e a plasticidade acrobática do bailado romântico russo. Posteriormente, fixou-se nos Estados Unidos da América, onde dinamizou diversas companhias de bailado e transformou o ensino da dança. Foi após a sua produção de O Quebra-Nozes que se realizou a primeira gravação sonora do bailado integral e que este passou a ser apresentado regularmente como espectáculo natalício por variadas companhias. Apesar das rupturas que o século XX operou na tradição do bailado clássico, o paradigma franco-russo manteve-se bem vivo como veículo de uma expressão corporal e musical enraizadas num Romantismo que foi, simultaneamente, localista e universalista.
João Silva, 2016