Na História da Música houve poucos momentos mais reveladores das relações entre as artes e o poder político do que a reacção das autoridades soviéticas a uma récita da ópera Lady Macbeth do distrito de Mtsensk. Até então, Chostakovitch era considerado um dos maiores expoentes da música na União Soviética. A partir da publicação de uma violenta crítica anónima no jornal Pravda a 28 de Janeiro de 1936, a liberdade criativa do compositor foi circunscrita. Essas limitações duraram até à morte de Estaline em 1953 e ao “desgelo”, um período de abrandamento da censura e repressão ocorrido durante a liderança de Krushchev. Lady Macbeth do distrito de Mtsensk tinhasido estreada quase simultaneamente em Leninegrado e em Moscovo em Janeiro de 1934. Apesar da recepção negativa pelo sector mais conservador da União dos Compositores Soviéticos, a ópera teve bastante sucesso e manteve-se em cena nas duas cidades até à publicação da crítica no Pravda. A União dos Compositores Soviéticos foi criada em 1932 para regular a actividade dos compositores. Essa instituição substituiu e concentrou a actividade de diversas agremiações, dirigindo a produção musical oficial na União Soviética. Com a oficialização do realismo socialista como doutrina artística a partir do Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934, criou-se uma relação ambígua entre modernismo e realismo. No campo musical, isso traduziu-se numa interacção complexa entre Modernismo e neo-Romantismo. Assim, os modelos modernistas de feição cosmopolita foram relegados para segundo plano e difundiram-se os cânones de uma nova arte nacional e proletária.

A apresentação de Lady Macbeth do distrito de Mtsensk em Moscovo, a 26 de Janeiro de 1936, ilustra essa mudança. Nessa noite, a presença no Teatro Bolshoi de Moscovo de Estaline, Vyacheslav Molotov (Presidente do Conselho dos Comissários do Povo), Anastas Mikoyan (influente membro do Politburo) e Andrei Zhdanov (então membro-candidato do Politburo e Secretário do Partido Comunista da União Soviética, que se tornou uma das pessoas mais influentes na política cultural do país no pós-Segunda Guerra Mundial) alterou o rumo da carreira de Chostakovitch. Além das récitas em Leninegrado e Moscovo, a ópera tinha já sido apresentada nos Estados Unidos da América, na Argentina, na Suécia, na Suíça e na Checoslováquia. O artigo apresentou Lady Macbeth do distrito de Mtsensk como uma “corrente confusa de som”, referindo que o seu sucesso internacional era uma consequência do seu apelo ao “gosto pervertido burguês”. Em contrapartida, as autoridades louvaram positivamente a ópera Tikhiy Don, escrita por Ivan Dzerzhinski e estreada em 1935, apresentando-a como um bom exemplo do realismo socialista. Essa comparação reforça a relação complexa entre Chostakovitch e as autoridades soviéticas, pois Chostakovitch tinha colaborado com o jovem Ivan Dzerzhinski na composição dessa ópera.

O libreto de Lady Macbeth do distrito de Mtsensk é baseado num conto de Nikolai Leskov, que conta a história de uma mulher casada que se apaixona por um trabalhador. Para viver esse amor, acaba por matar o sogro e o marido. Essa temática escandalosa remete para os enredos de algumas óperas modernistas inspiradas em narrativas românticas, como Wozzeck, de Alban Berg. Wozzeck foi apresentada em Leninegrado a 13 de Junho de 1927 e Chostakovitch assistiu a diversas récitas. Apesar de alguns musicólogos traçarem uma linha directa entre a ópera de Berg e as óperas contemporâneas de Chostakovitch (nomeadamente, O nariz e Lady Macbeth), o próprio Chostakovitch negou essa influência. Contudo, são óperas de cariz modernista em que o compositor cultiva uma linguagem mais dissonante, próxima do Expressionismo.

A Passacagliaé um dos interlúdios orquestrais que Chostakovitch interpola na ópera. Neste caso, é inserida no segundo acto da ópera, imediatamente após o homicídio do sogro de Katerina Izmailova. Assim, funciona como um momento de suspensão da acção e de caracterização musical de uma situação, ao estilo do teatro brechtiano. A passacaglia é uma forma musical cultivada a partir do Barroco e baseada em variações sobre um baixo ostinato. Chostakovitch inicia-a com acordes dissonantes e traça uma textura que se desenrola do mais esparso para o mais denso, aumentando em expressividade. Para essa interpretação ser eficaz, é requerido bastante virtuosismo aos músicos da orquestra na apresentação desse momento capital na História da Música do século XX.

João Silva, 2016