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1. Moderato
2. Andante
3. Menuett: Allegretto
4. Rondo: Allegro
“A música [de Schubert] (…) tem uma presença imediata pouco comum. Schubert está, de algum modo, mais connosco do que a maior parte dos clássicos (…). Os compositores contemporâneos olham para ele como colega e procuram novos caminhos nas suas partituras. Várias composições de décadas recentes partem de fontes schubertianas: Rendering, de Luciano Berio; 19 de Novembro de 1828, de John Harbison (…); Lazarus, de Edison Denisov; e Torso, de Georg Friedrich Haas, para mencionar apenas alguns exemplos”.
– Alex Ross, “Listen to this” (2010), p. 134.
Schubert (1797-1828) está bem vivo na nossa cultura, mesmo no âmbito da música contemporânea. E os casos referidos por Alex Ross são, de facto, apenas alguns: poderíamos ainda mencionar, por exemplo, Schubert-Phantasie, de Dieter Schnebel, ou o Winterreise de Hans Zender. A relação dessas composições com o material de base é muito variável, desde aquelas que são essencialmente arranjos ou orquestrações (como é o caso da obra que hoje ouvimos, Torso, em grande medida uma transcrição da sonata para piano D. 840) a outras com uma relação mais livre e até aparentemente distante (como é o caso da obra de Schnebel, que, partindo também de uma sonata para piano de Schubert, a transforma radicalmente através de um enorme alargamento sonoro e temporal).
Várias dessas (re)composições recentes partem de obras que Schubert deixou incompletas. (E foram muitas: na sua actividade frenética de composição, que lhe permitiu, até à morte prematura aos 31 anos de idade, escrever à volta de um milhar de obras, vários projectos ficaram inacabados). Assim, em Lazarus, por exemplo, o compositor russo Edison Denisov escreveu música para completar a oratória de Schubert, procurando manter o estilo do original; e em Rendering, o compositor italiano Luciano Berio partiu de esboços de uma 10ª Sinfonia, deixados em estado fragmentário, e orquestrou-os ao estilo de Schubert, mas em vez de ligar esses fragmentos com música que Schubert poderia ter escrito, intercalou-os com música modernista de sua lavra, contendo citações e alusões aos esboços originais.
Também Torso, que hoje ouvimos, parte de uma obra inacabada de Schubert: a já referida sonata para piano D. 840, de cujos quatro andamentos só os dois primeiros foram terminados. A abordagem de Georg Friedrich Haas é, num certo sentido, mais radical do que as de Denisov ou Berio: em vez de completar o que ficou incompleto (ou, pelo menos, ligar os fragmentos existentes com nova música), Haas assume plenamente essa incompletude, simplesmente interrompendo a sua orquestração do terceiro e do quarto andamento no ponto em que Schubert parou de escrever. O efeito é de uma poesia subtil: a linguagem musical (tonal) pede uma conclusão clara e estável, mas a música pára antes de lá chegar, como se fosse travada por uma força exterior (revelando, talvez, a fragilidade de todos os empreendimentos humanos). O efeito é especialmente inquietante no terceiro andamento (um minueto com trio), pois a interrupção segue-se a uma parte de grande actividade, com um crescendo e um accelerando: como diz Haas, “o impulso progressivo eufórico leva a uma terminação prematura, ao nada”.
O arranjo de Haas é, em geral, relativamente fiel à música original, projectando-a orquestralmente de uma forma que quase parece revelar uma nova sinfonia de Schubert, que ainda não conhecíamos. E alcança, nesse trabalho, belíssimos efeitos de sonoridade, em especial no segundo andamento – um Andante dominado pelo solo algo nostálgico do trompete. Mas há também elementos assumidamente contemporâneos, nos quais transparece a linguagem de Haas (em diálogo, ou até em confronto, com a de Schubert): por exemplo, ao orquestrar certas passagens mais estáticas da sonata (a primeira delas logo no primeiro andamento, a seguir à apresentação do primeiro tema), Haas aproveita essa janela temporal para acrescentar, em plano de fundo, um acorde complexo extraído da série de harmónicos, que parece amplificar a ressonância da sonoridade original, ao mesmo tempo que nos transporta, ainda que por breves instantes, para a nossa contemporaneidade (trata-se, aliás, de um tipo de acorde muito característico da música de Haas).
Como reconheceu o próprio Haas numa entrevista, Schubert é um dos seus “deuses”. E Torso não é a única obra que o demonstra: também o seu ciclo de canções Atthis, por exemplo, é claramente influenciado por outra obra de Schubert: Winterreise. Na verdade, embora a música de Haas seja tudo menos passadista, há nela uma forte ligação à tradição, em especial à tradição austro-germânica, da qual, enquanto compositor austríaco, ele é, hoje em dia, um dos principais continuadores. Essa ligação vê-se igualmente em obras como 7 Klangräume (2005), em que a música de Haas é intercalada com partes do Requiem de Mozart; ou em Traum in des Sommers Nacht (2009), um tributo a Mendelssohn.
Daniel Moreira, 2018