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1. Präludium
2. Reigen
3. Marsch
É conhecida a relação de Berg com Schoenberg: foi um dos seus mais notáveis alunos (o mais notável, a par de Webern). Mas, curiosamente, antes de estudar com Schoenberg (a partir de 1904) a técnica composicional de Berg era bastante deficiente, como salientou o próprio professor: “Berg é um compositor extraordinariamente dotado, mas o estado em que ele estava quando veio ter comigo era tal que a sua imaginação (…) não conseguia trabalhar com nada excepto canções. (…) Ele era absolutamente incapaz de escrever um andamento instrumental ou inventar um tema instrumental”. Talvez por causa desse início, em que Berg tanto dependia de Schoenberg, a relação entre os dois tardou a tornar-se (se é que alguma vez se tornou) uma relação entre iguais. E assim se compreende que, mesmo depois de Berg ter terminado os estudos com Schoenberg (em 1911), este último ainda criticasse severamente as suas composições – algo que deixava Berg profundamente abalado. Schoenberg, por exemplo, criticou brutalmente os Altenberg Lieder, compostos por Berg em Agosto de 1912, dizendo que eram obras “insignificantes” e “sem valor”, aparentemente por serem peças demasiado curtas e por procurarem a novidade a todo o custo.
A obra que hoje ouvimos foi, em parte, uma resposta a essas críticas e uma tentativa de reconciliação – estética e pessoal – com Schoenberg (a obra é lhe dedicada, por ocasião do seu quadragésimo aniversário). Aliás, Schoenberg, na sequência das suas críticas, recomendou a Berg que escrevesse uma suite para orquestra, e embora Berg não tenha seguido essa sugestão, preferindo concentrar-se, inicialmente, no projecto de uma sinfonia, vemo-lo, em qualquer caso, a abraçar a ideia de uma obra de maior dimensão. O resultado final acabou por ser uma obra que não é nem uma suite nem uma sinfonia (intitulando-se simplesmente Três peças), mas que tem aspectos dos dois: da suite, o facto de cada uma das (três) peças ter um carácter diferenciado (e a primeira chama-se até Prelúdio, como é comum numa suite); e quanto à relação com a sinfonia, o próprio Berg chamou a atenção para o facto de a primeira peça corresponder ao Allegro (primeiro andamento) de uma sinfonia, a segunda condensar, numa só peça, o Scherzo e o andamento lento (por essa ordem), e a terceira corresponder ao finale de uma sinfonia.
Berg é geralmente conhecido como o mais romântico dos três compositores da Segunda Escola de Viena, aquele com uma ligação mais evidente à música do passado (e, também por isso, o mais acessível e popular). As Três peças para orquestra fazem jus – pelo menos até certo ponto – a essa fama. A primeira peça, por exemplo, segue um gesto típico da música romântica: um grande crescendo até um colossal clímax, a que se segue um desvanecimento final. Certos autores têm até reconhecido um modelo mais específico para essa trajectória: o primeiro andamento da 9ª Sinfonia de Mahler (em que a música também começa no silêncio e aos poucos ganha forma), um andamento que Berg considerava “o mais glorioso que Mahler compôs” e a cuja estreia assistira, em Viena, em Junho de 1912. E não é só essa a ligação a Mahler: muitas das melodias de Berg recordam irresistivelmente as de Mahler, ainda que o contexto geral seja muito mais dissonante e atonal e a expressividade correspondente mais violenta e catastrófica. E há também toda uma descoberta de novas sonoridades orquestrais, como o ruminar inicial das percussões.
Depois da monumentalidade da primeira peça, a segunda é a de carácter mais lírico e delicado, ainda que com muitos contrastes internos. O título da peça (Reigen) alude a danças primaveris e ritos de fertilidade típicos do mês de Maio, embora essa temática seja muitas vezes abordada de modo grotesco e caricatural.
A terceira peça é o centro de gravidade de todo o conjunto, ao durar aproximadamente o mesmo tempo que as duas anteriores juntas. Intitulada Marsch, é, de todas as peças, aquela em que é mais explícita a referência a Mahler, desde logo por abordar o tópico caracteristicamente mahleriano da marcha (veja-se a marcha fúnebre da 1ª Sinfonia ou o Rondó-Burlesque da 9ª). De resto, não se trata propriamente de uma marcha, mas, na célebre expressão de Geoge Perle, “de música sobre a marcha”. Contudo, a associação mahleriana mais forte é à 6ª Sinfonia, não só pelo célebre uso do martelo (três pancadas em Mahler, cinco em Berg) mas por toda a atmosfera trágica partilhada entre as duas obras. De resto, esta última peça de Berg é de uma violência de expressão tal que o mesmo Georg Perle viu nela um retrato do início da Grande Guerra: “A Marcha foi completada nas semanas imediatamente a seguir ao assassinato de Sarajevo e é, no seu sentimento de destruição e catástrofe, uma expressão ideal, ainda que porventura não-intencional, das implicações fatídicas desse evento”.
Daniel Moreira, 2018