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  • Ária, 30 Variações e Ária da capo 

     

    Conhecemos hoje como Variações Goldberg a composição originalmente intitulada Exercício de Teclado, que consiste em uma ÁRIA com diversas variações para cravo com dois teclados. Composta para os amadores [amantes da música], para o deleite dos seus espíritos, por Johann Sebastian Bach, compositor da Corte Real da Polónia, e da Corte Eleitoral da Saxónia, Mestre de Capela e Director Musical em Lípsia. A obra consiste numa ária instrumental (com as características de uma sarabanda, dança francesa de corte, lenta e em tempo ternário) seguida de 30 variações; no final a ária é repetida, de acordo com a indicação original Aria da Capo è Fine. Considerada hoje como o apogeu desta forma no período Barroco, a sua intrínseca beleza e o virtuosismo exigido para a sua interpretação tornaram-na uma peça favorita do público e de vários intérpretes, sendo frequentemente apresentada em recital. Possui ainda uma extensa e variada discografia, não só em cravo mas também em piano e outras transcrições.

    A obra foi originalmente publicada em Nuremberga por Balthasar Schmid (1705-1749). É interessante constatar que a maior parte das obras impressas por Schmid foi composta num estilo mais moderno, de carácter assumidamente galante, e por uma geração mais jovem (Emmanuel Bach, Krebs, Nichelmann, Marpurg…), correspondendo ao gosto dominante de um mercado constituído sobretudo por músicos amadores. Não é pois de surpreender que as Variações Goldberg sejam estilisticamente uma das obras mais ‘modernas’ de Bach e numa forma apreciada em contextos musicais domésticos. No entanto, como em várias outras obras tardias do compositor (Oferenda Musical, A Arte da Fuga, Missa em Si menor…), há uma clara preocupação enciclopedista em incluir diversos estilos, formas e tradições musicais de raiz mais erudita ou mesmo popular. A elevada dificuldade técnica apresentada por diversas variações parece colocar a obra fora do alcance da grande maioria dos amadores. No entanto não nos devemos iludir, pois na época o epíteto de ‘amador’ não aludia à capacidade técnica dos intérpretes – frequentemente, membros da nobreza e mesmo burgueses dominavam os instrumentos com destreza igual ou superior a muitos profissionais. Além disso, nada os obrigava a uma apresentação integral e sucessiva de todos os andamentos, sendo possível a mera selecção dos extractos favoritos ou mais acessíveis, para mera fruição individual ou de um pequeno e selecto grupo de ouvintes. Nunca é demais relembrar que, à época, o conceito de um ‘recital a solo’ para um público pagante não existia e, apesar de a obra ser hoje considerada um ‘tour de force’ performativo, as suas dificuldades eram vistas sobretudo como desafios e enigmas para serem solucionados e desfrutados na intimidade do lar.

    O título pelas quais são hoje conhecidas deve-se a uma historieta contada por Forkel na sua primeira biografia de Bach publicada em 1802, e que envolve o cravista J. G. Goldberg – um aluno de Bach – e o seu patrono, o Conde Hermann Karl von Keyserlingk, representante da Rússia junto da corte saxónica em Dresden. Segundo Forkel, as variações teriam sido encomendadas por Von Keyserlingk para Goldberg o entreter durante as suas noites de insónia. No entanto tal versão não faz qualquer sentido mediante todas as evidências históricas (nomeadamente a ausência de uma dedicatória na edição impressa) e a única coisa que podemos supor é que Goldberg (na altura da publicação, um jovem virtuoso com 14 anos) pudesse realmente ter interpretado a obra para confortar o desafortunado conde em alguma das suas noites em claro.

    O título ‘Exercício de Teclado’ (Clavierübung), apesar da ausência do número IV, associa inequivocamente este volume às anteriores três publicações de Bach para tecla: Clavierübung I (as 6 Partitas); Clavierübung II (o Concerto Italiano e a Ouverture Francesa); e o Clavierübung III (um prelúdio e fuga, 21 prelúdios corais e 4 duetos para órgão). Aventura-se que a data de impressão seja 1741/42, e a composição da obra não deverá ser muito anterior, devendo situar-se ca. 1739/40. A Ária, isolada, foi copiada por Anna Magdalena Bach num dos seus cadernos de aprendizagem, datado de 1725. Devido à data recuada do manuscrito, durante algum tempo supôs-se que o tema das variações fosse uma composição de um período anterior, ou até mesmo de um outro autor que não Bach, uma vez que os cadernos da sua esposa recolhiam obras de vários outros compositores (Carl Philipp, Couperin, Böhm..). Mais tarde constatou-se que a cópia de Anna Magdalena foi inserida muito posteriormente, e já a partir da própria edição impressa.

    Contrariamente ao que possa ser esperado (e sobretudo tendo em vista exemplos posteriores do género ‘tema com variações’), o que é variado nesta obra não é a melodia original mas sim o baixo da ária e a sua correspondente estrutura harmónica. Esta prática de variações sobre um baixo era a mais típica do período Barroco e a este género pertencem, por exemplo, os vários conjuntos de variações sobre a Folia (Corelli, A. Scarlatti, Marais, C. P. E. Bach...) bem como incontáveis Chaconas, Passacalhas e Grounds. As variações sobre uma melodia eram apenas usadas quando esta possuía um texto bem conhecido, como uma canção popular ou um coral sacro. Alguns dos antecedentes das Variações Goldberg, e que Bach terá possivelmente conhecido, são as variações Auf die Mayerin de Froberger (1649) e a obra sobre o mesmo tema de Reincken. Influência mais segura terão exercido os 6 conjuntos de variações que compõem o Hexachordum Apollinis de Pachelbel e a Ária com 32 variações intitulada La Capricciosa de Buxtehude. O próprio Bach havia já composto na juventude (ca. 1709) a Aria variata alla maniera italiana, e que consiste de igualmente de uma Ária (desta vez uma Alemanda italiana ou Tedesca) com 10 variações.

    O verdadeiro tema das variações é pois um baixo de 32 compassos, número que corresponde ao total de andamentos da obra incluindo a reexposição final da ária. Este foi apenas um dos vários recursos empregues por Bach para conferir coesão estrutural à obra e evitar que esta se tornasse demasiado dispersa devido à sua grande dimensão. A organização cíclica é o mais notável destes recursos: as 30 variações são divididas em 10 grupos de 3 e a terceira de cada um destes grupos é sempre escrita em cânone, uma elaborada técnica contrapontística em que duas vozes se imitam rigorosamente à distância de um determinado intervalo. O intervalo escolhido vai aumentando progressivamente desde o uníssono ou 1ª (variação 3) até à 9ª (variação 27). Nas variações 12 e 15 (cânones à 4ª e à 5ª) o tema é imitado de forma invertida, ou seja, os intervalos originalmente ascendentes tornam-se agora descendentes, e vice-versa. Finalmente, a 30ª variação – que logicamente deveria ser um cânone – é composta recorrendo a um outro gigantesco desafio contrapontístico: a combinação de várias melodias tradicionais em simultâneo. Esta prática era um divertimento típico dos vários encontros festivos da família Bach e introduz, com as suas melodias populares, uma curiosa aliança entre o erudito e o vernáculo, justificando assim as pretensões universalistas da obra.

    Para além do processo organizativo descrito, Bach preocupou-se em reforçar a simetria, ao compor a variação 16 na forma de uma Ouverture em estilo francês e que “abre” assim a segunda parte. Esta é apenas uma das diversas variações que possuem caracteres e estilos particularmente delineados, demonstrativos de várias formas e géneros em uso. Vejamos algumas: a variação 7 tem a indicação manuscrita ‘al tempo di Giga’ e é escrita como um Canarie – uma subespécie de Giga muito ao gosto francês; a variação 8 é uma Pièce Croisée ao estilo de François Couperin, em que as duas mãos se sobrepõem nos dois teclados diferentes (na versão original para cravo), de forma a interpretar duas linhas melódicas independentes mas na mesma tessitura; a variação 10 é intitulada ‘Fugetta’ [sic] e, como o nome indica, é uma Fuga a 4 vozes com duas entradas do sujeito por voz; a variação 13 é escrita com ornamentações floreadas ao estilo dos violinistas italianos; a variação 16 é a já citada Ouverture à francesa, em duas secções contrastantes; a variação 22, com a indicação ‘Alla breve’, é composta ao estilo de um Ricercar seiscentista, num estilo conservador de polifonia imitativa; a variação 25, com indicação ‘Adagio’, apresenta uma melodia cantabile, lírica e muito ornamentada, sobre um acompanhamento discreto, e que reproduz os andamentos centrais dos concertos italianos – ou as suas imitações, como o já referido Concerto Italiano. Há que acrescentar a esta lista vários dos cânones, que evocam andamentos de sonata em trio italiana, na sua textura de duas vozes imitativas entrelaçadas na mesma tessitura, criando e resolvendo dissonâncias sobre um baixo de acompanhamento independente e com mera função de suporte harmónico.

    A maior parte das restantes variações são escritas num idioma elaborado e virtuoso, reminiscente das tocatas e sonatas para tecla italianas, e em que é evidente e determinante a influência de Domenico Scarlatti. A única obra em que Bach reproduz este estilo é na quase contemporânea Fantasia em Dó menor BWV 906. O estilo de Scarlatti era conhecido no centro da Europa pelo menos desde as suas passagens por Paris em 1724 e 1725 (das quais temos conhecimento graças à correspondência de D. Luís da Cunha, embaixador de Portugal em França). Uma das suas imagens de marca era o cruzamento das mãos, não como nas já mencionadas pièces croisées, mas com grande saltos alternados e de grande amplitude. Fora da Península Ibérica, o primeiro compositor a imitar conscientemente esta técnica por influência directa de Scarlatti terá sido Rameau na sua peça Les trois mains publicada ca. 1729. O cruzamento das mãos só se divulgou pela restante Europa continental a partir das edições francesas das sonatas de Scarlatti nos anos 1742-47, mas os seus Essercizi (dedicados a D. João V) haviam sido publicados em Londres já em 1738. Bach tornou-se assim um dos primeiros compositores a explorar de forma efectiva, diversificada e arrojada estes efeitos, que não só alargam consideravelmente a capacidade expressiva do instrumento, como contribuem para a maior espectacularidade da performance, aqui combinados com a abundância de brilhantes e velozes escalas, arpejos e outras figurações em valores rítmicos rápidos, acordes maciços e trilos simultâneos.

    A diversidade de afectos é ainda garantida pelo recurso ao modo menor em três das variações e pela enorme variedade de métricas utilizadas. A ária-tema é em tempo ternário simples (3/4) e por isso quase metade das variações está escrita no mesmo compasso, e várias outras apresentam tempos ternários similares (3/8, 9/8...); mas são utilizados no total pelo menos 10 anotações diferentes de compasso (binários, quaternários, compostos)! Apenas a variação 25 apresenta uma indicação concreta de andamento (Adagio), embora se trate mais de um indicador de estilo e de carácter do que de uma especificação absoluta de tempo. No entanto, a escolha dos andamentos não está arbitrariamente dependente do mero gosto do intérprete, devendo resultar do correcto discernimento da notação e do significado e carácter associado na época a cada estilo e forma.

     

    Finalmente, uma última palavra sobre a interpretação das Variações Goldberg no piano moderno: a obra original foi claramente destinada pelo compositor para ‘um cravo de dois manuais’. Esta é uma indicação assaz rara na época, uma vez que os compositores normalmente deixavam em aberto as possibilidades de registação oferecidas pelo cravo, até porque a grande maioria dos intérpretes possuía cravos de um só teclado, ou ainda espinetas ou mesmo clavicórdios. Bach oferece a mesma indicação na segunda parte do Clavierübung, mas enquanto aí os dois teclados são usados sobretudo para simular os contrastes orquestrais entre ‘solo’ e ‘tutti’ – tanto o Concerto como a Ouverture são formas orquestrais adaptadas a um instrumento solista –, nas Variações Goldberg os dois teclados destinam-se a sublinhar as diferentes linhas melódicas e contrastes de texturas, a facilitar o cruzamento das mãos e a prover maior variedade tímbrica. Bach especifica primorosamente, para cada variação, se esta deve ser tocada só num ou nos dois teclados. Não determina, contudo, qual das mãos deve ser colocada no teclado superior ou inferior, nem qual a combinação de registos a utilizar.

    Bach conheceu em Berlim, nos últimos anos de vida, os pianofortes construídos por Silbermann que utilizavam a mecânica inventada por Cristofori. Sabemos que fez algumas críticas construtivas ao instrumento, e que nele improvisou o Ricercar a 3 incluído na Oferenda Musical. Até cerca de 1800 os vários instrumentos de teclado eram em larga medida considerados intercambiáveis e partilhavam a maior parte do seu repertório, ainda que se considerassem determinados instrumentos mais aptos para géneros e estilos específicos. Hoje em dia a interpretação das Variações Goldberg no piano, tal como a restante obra para tecla de Bach, é uma possibilidade sancionada por cerca de 200 anos de prática. Tal escolha estética é absolutamente legítima, mas requer a consciencialização de que se trata de uma ‘transcrição’ da obra original, uma vez que o novo instrumento exige uma adaptação a diferentes sonoridades, timbres e técnicas. O piano moderno oferece possibilidades interpretativas alternativas – maior gradação dinâmica, máxima potência sonora, melhor sustentação dos sons. Outras possibilidades, tidas em consideração por Bach, naturalmente perdem-se ou são mais difíceis de reproduzir, nomeadamente o contraste tímbrico, a variedade de cores, a maior transparência de texturas e a mais clara articulação proporcionadas pelo cravo. Qualquer transcrição tem, naturalmente, vantagens e desvantagens. Cabe a cada um decidir qual das possibilidades lhe proporciona a máxima fruição estética e maior ‘deleite do seu espírito’, tal como nos desejava Bach no seu título original...

     


    Fernando Miguel Jalôto, 2017 

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