Ao Alcance de Todos

O que é a afasia? Poucos saberemos que se trata de “uma perturbação da linguagem adquirida subitamente por lesão neurológica nas áreas específicas em que ela é processada”, como explica Paula Valente, diretora do Instituto Português da Afasia (IPA). “Não afeta a inteligência, mas lesa a comunicação verbal (oral e escrita) e a não-verbal, tendo consequências como a disfunção familiar, a perda da autonomia, o isolamento social, o desemprego e o desequilíbrio emocional”, esclarece, apoiando-se em estudos oficiais para estimar que haja “mais de 40 000 portugueses com afasia” e que “30% dos sobreviventes de AVC” passem a sofrer desta patologia crónica. O IPA associou-se ao Serviço Educativo da Casa da Música para construir um espetáculo interpretado por cidadãos com afasia. Em Pessoa (27 de março, 19:00, sala 2), inserido na edição deste ano do festival Ao Alcance de Todos, “utiliza como princípio de ação o poder terapêutico da música junto dos participantes, tanto ao nível da reabilitação neurológica (promoção da neuroplasticidade), como socioemocional (socialização, bem-estar, humor, diminuição da depressão) e psicomotora (recuperação e melhoria de funções cognitivas e motoras)”, adianta Paula Valente, também terapeuta da fala, que especifica algumas das virtudes deste projeto: “Valoriza e promove as qualidades dos indivíduos, trazendo o foco para o bem-estar e não para as dificuldades inerentes à sua condição, ou seja, procura normalizar uma questão-chave na afasia: embora o ato de proferir palavras depois do AVC possa ser frustrante, cantar é, pelo contrário, uma forma poderosa de a pessoa continuar a expressar-se por palavras, sem dificuldade e com prazer. Acredito que irá motivar e energizar os participantes para persistirem com resiliência nos desafios do dia-a-dia e da reabilitação. Espero também que possa aproximar pessoas com afasia e sobreviventes de AVC dos seus cuidadores formais e informais e da comunidade, promovendo encontros catárticos, em palco e fora dele”.

Sensibilizar a sociedade para o que é a afasia, demonstrando o papel da música e do canto na reabilitação de uma vida bem maior do que ela, eis então, resumido, o propósito de Em Pessoa, espetáculo com conceção artística de Sofia Teixeira. Mas melhor do que ninguém resume-o a criadora: “Relembra-nos que a afasia é uma realidade comum, da qual nem mesmo quem vive em torno das palavras – como, de resto, nos lembram os casos de Baudelaire e Stendhal – está alheio. Assim, partimos da premissa de que Fernando Pessoa, um dos maiores criativos da palavra em português, está entre nós e, perante a sua própria condição de afasia, se junta ao Instituto Português de Afasia (IPA), formalmente inscrito por mim e pela Inês Luzio, com quem partilho o desenvolvimento deste projeto, para aprender, junto de um grupo que reúne alguns dos maiores especialistas em afasia – que são, naturalmente, as próprias pessoas com afasia –, que a vida vai muito para além das palavras. Através de um processo de humanização do Sr. Pessoa, apresentaremos um conjunto de conceções musicais onde temos vindo a procurar expressar e partilhar dimensões humanas perante as quais, mesmo ao longo da obra deste poeta, as palavras pouco podem”.

Jorge Prendas, coordenador do Serviço Educativo da Casa da Música, fala com orgulho do Ao Alcance de Todos, que este ano se estende até ao final de abril. “É muito mais do que um festival balizado no tempo. É uma construção artística que, ano após ano, desde 2007, tem dado oportunidade a muitas comunidades de desenvolverem, na Casa da Música, projetos artísticos que em regra privilegiam a criação coletiva”. Convicto de que “o palco é o espaço real de inclusão, porque lá todos são artistas, independentemente das suas características físicas, intelectuais ou sociais”, Prendas lembra que, na edição de 2024, além do já destacado Em Pessoa, “há também a oficina Sonorama, pensada para instituições dedicadas a pessoas com necessidades especiais, e o espetáculo Abril, feito com a Associação dos Deficientes das Forças Armadas, alunos do Balleteatro e formandos do Curso de Formação de Animadores Musicais”.

Estamos, assim, perante um festival de vocação muito singular, mas aberto a todos, em que a música não é só o fim, é também um meio – diferenciado, pela sua universalidade – para promover a inclusão e a harmonia no mundo.