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Perante esta flor
ouvir a sonora floresta.
Esta peça partiu do estudo de certos pássaros que abominam o silêncio e que gritam estridente e insistentemente logo que nada ouvem, calando-se assim que um novo som se tenha reestabelecido. Aos poucos fui descobrindo as características destes animais, como por exemplo terem o instinto de gritar não só quando deixam de ouvir, mas também quando ouvem o grito dos seus congéneres, o que resulta em ondas muito curtas de som fortíssimo capaz de ensurdecer quem estiver próximo demais; mas também como estes animais não só se deixam alertar, mas fascinar pelo silêncio. Deste modo este tornou-se um importantíssimo factor no ritual de acasalamento, fazendo com que estes pássaros, que gritam tão estridentemente, tenham o bater de asas mais silencioso alguma vez medido e uma penugem fofíssima e consigam assim passar de resto perfeitamente despercebidos sonoramente. A descoberta da floresta onde estes animais habitam tornou-se na descoberta sonora desta peça, sendo que tudo o que nesta floresta se encontraria visualmente é, na verdade, som.
Os limites da peça estão esbatidos: no curso desta viagem vai-se repetindo a si mesma, recriando-se continuamente, oscilando. (Pode-se perguntar: onde começa, onde acabará?) Como quem ao dar atenção a certo pormenor de uma paisagem o reconhece como sendo completo em si e ao mesmo tempo parte dum todo, nesta peça somos desde o início mergulhados num espaço aberto de sons e convidados a dar atenção aos seus elementos constituintes. A partir destes a textura musical vai-se adensando: há pulsações lentas, formadas por diferentes grupos instrumentais, que se repetem variadas, expandindo-se e contraindo-se. Cria-se uma planície de som intercalada por lampejos de luz, por vezes suaves, por vezes ofuscantes, que mais à frente se contrai até apenas sobrarem vários impulsos de diferentes densidades, como árvores de troncos distintos que vão mudando de cor, dependendo dos instrumentos que os tocam e das suas estruturas harmónicas interiores.
Com os violinos e a harpa o fluir musical fica suspenso, como quem, após passear por uma floresta, entra numa clareira, clareira esta que se transforma numa paisagem de nevoeiro: só se vê aquilo que inesperadamente aparece à nossa frente, sem nunca sabermos que caminho realmente tomamos. Estas repentinas massas de som são intercaladas por uma filigrana sonora. As diferenciações são mínimas mas essenciais e, como acontece a quem anda às cegas sentir mais aguçadamente o fio duma teia de aranha na cara ou o roçar de um ramo, ou ouvir nitidamente o restolhar de folhas a certa distância, aqui, um quinteto formado por flautim, clarinete, trompete, violino e viola vai enchendo os silêncios rendilhadamente com fios de som. Também as próprias grandes massas sonoras vão sempre mudando de cor e densidade, até se esfumarem em palavras e ar.
No final retorna a extrema densidade desta floresta sonora num rodopio de aproximação e afastamento e cor, com uma alternância entre cordas e sopros intercalada por glockenspiel, harpa e percussão, que teimam em ganhar espaço numa textura que é presa e densa demais para eles. Numa intercalação que é uma curta mas definitiva luta, estes acabam novamente por ficar suspensos, parecendo-se como reflexos uns dos outros.
António Sá-Dantas, 2016