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Igor Stravinski foi discípulo de Nikolai Rimski-Korsakov no início do séc. XX. “Nos anos de 1903, 1904 e 1905 eu estava sempre na casa dele. (…) As suas inesquecíveis lições duravam pouco mais de uma hora e realizavam-se duas vezes por semana”, conta Stravinski a Robert Craft, numa das várias conversas entre os dois, publicadas em 1959. “Nunca me elogiou; ele era sempre muito calado e poupado no elogio aos seus alunos. Mas os seus amigos contaram-me, depois da sua morte, que ele falou com grande entusiasmo da partitura do Scherzo [Fantastique]”, continua.
Stravinski fica devastado quando Rimski-Korsakov falece em Junho de 1908. Para homenagear o seu Mestre, compõe a Canção fúnebre, op. 5. A obra foi estreada a 30 de Janeiro de 1909 (17 de Janeiro se considerarmos o calendário russo que vigorava no país à data), num Concerto Sinfónico Russo em memória de Nicolai Rimski-Korsakov, com Felix Blumenthal a dirigir a orquestra do Conde Sheremetev na Sala Grande do Conservatório de São Petersburgo. Depois da estreia a partitura desapareceu. Até que, em 2015, quando o edifício do Conservatório de São Petersburgo foi esvaziado para obras de renovação, a musicóloga Natalia Braginskaya, especialista na obra de Igor Stravinski, descobriu, numa pilha de papéis arrumados num canto recôndito da biblioteca, as partes de orquestra manuscritas da Canção fúnebre, que haviam sido copiadas em 1908 por copistas profissionais pagos pelos Concertos Sinfónicos Russos. De acordo com as notas incluídas na partitura editada pela Boosey & Hawkes em 2017, estas partes contêm anotações feitas pelos músicos e correcções efectuadas pelo compositor por altura da preparação da estreia da obra, em Janeiro de 1909.
Quando publicou a sua autobiografia, em 1936, Stravinski recordou assim a composição da Canção fúnebre: “Já não me lembro da música, mas lembro-me da ideia que esteve na génese da concepção da obra e que consistia em colocar todos os instrumentos solistas da orquestra a passar sucessivamente pelo túmulo do Mestre, cada um colocando a sua própria melodia, como se fosse uma coroa de flores, tendo como pano de fundo trémulos a simular os murmúrios das vozes graves de um coro. A impressão que causou no público, e em mim, foi marcante, mas não consigo avaliar se foi pela atmosfera de luto ou pelo mérito da obra”.
A Canção fúnebre op. 5 desenrola-se num único andamento, Lento assai, e, para além das cordas, conta com uma orquestra formada por 3 flautas (com a terceira a ser dobrada pelo piccolo), 2 oboés, corne inglês, 3 clarinetes (o terceiro dobrado pelo clarinete baixo), 3 fagotes (o terceiro dobrado pelo contrafagote), 4 trompas, 3 trompetes, 3 trombones, tuba, timbales, pratos, bombo, tam-tam, piano e duas harpas. É à trompa que cabe apresentar a melodia densa, escura, impactante que circulará por todos os instrumentos da orquestra, conforme a descrição do compositor.
A segunda interpretação da Canção fúnebre op. 5 ocorreu a 2 de Dezembro de 2016, na Sala de Concertos do Teatro Mariinski, em São Petersburgo, com o maestro Valery Gergiev a dirigir a orquestra daquele teatro, no concerto de abertura do Ano Stravinski.
Ana Maria Liberal, 2018