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  • No final da década de 1950 e durante toda a década de 1960, a orquestra foi palco de uma verdadeira revolução. Com as primeiras obras orquestrais de compositores como Ligeti, Penderecki e Lutoslawski, em particular, surgia uma música completamente nova: uma música de texturas ou blocos de som, em vez de temas ou melodias. Atmosphères de Ligeti, por exemplo, começava com uma longuíssima sonoridade, totalmente estática, com intensidade sonora mínima mas densidade máxima (uma nota diferente para cada instrumento). Mais à frente, mantendo sempre um máximo de intensidade sonora, quatro flautins subiam gradualmente até ao extremo do registo agudo e, então, passávamos repentinamente para o extremo do registo grave, com seis contrabaixos. Tudo isso, sempre, sem qualquer vislumbre de melodia. Em suma, trata-se de uma música em que o que conta é o jogo entre diferentes texturas (ou sonoridades), cada uma delas caracterizada por uma determinada cor sonora (em função dos instrumentos utilizados), por ser mais ou menos densa, mais aguda ou mais grave, mais ou menos intensa – e que nos convida a prestar mais atenção às qualidades intrínsecas dos sons.

    Se, a partir dos anos 70, voltaram à orquestra abordagens mais melódicas e tradicionais, esta abordagem textural fez escola e continua hoje a ser importante. Muitos compositores, aliás, combinam as duas. É o caso de Jörg Widmann, compositor ainda relativamente jovem (um dos mais brilhantes da sua geração), muito prolífico e versátil, que estudou com algumas das figuras mais importantes da música contemporânea alemã, nomeadamente Henze, Goebbels e Rihm. Widmann, na verdade, não só se compraz em justapor esses dois mundos contrastantes em certas obras (como Antiphon), como também tem obras de carácter mais exclusivamente melódico (como o Concerto para violino) e outras de carácter mais exclusivamente textural (como Labyrinth III, que hoje ouvimos, em que quase não há melodias).

    Labyrinth III começa um pouco como o exemplo citado de Atmosphères: uma sonoridade longa e totalmente estática, densa mas suave, neste caso nas cordas (em harmónicos). Depois disso – e repentinamente – a música muda por completo: em vez de contínua, fica descontínua e fragmentada; em vez de uma sonoridade longa em todas as cordas, aparecem intervenções soltas e breves em pequenos grupos de instrumentos ou solistas; em vez de uma simultaneidade densa de mais de 20 notas diferentes, todos os instrumentos, nas suas intervenções sucessivas, tocam a mesma nota. Logo a seguir, à medida que entram outros instrumentos – as harpas e os pianos, primeiro, o banjo e a percussão, depois, os clarinetes, com notas muito graves, mais à frente – a música vai gradualmente ficando mais densa e complexa. Assim funciona esta música: há contrastes e progressões, como na música tradicional, mas não entre temas ou melodias, antes entre texturas ou blocos de som.

    Só depois de todos os instrumentos terem entrado, e já vários minutos de música terem decorrido, é que, finalmente, se ouve a voz solista (curiosamente cantando do meio do público). Aliás, apesar de ser solista, a voz intervém relativamente pouco, o que não deixa de ser pouco convencional e surpreendente, só por isso criando uma certa tensão.

    Ao longo da obra, a maior parte das intervenções vocais não tem texto, mas apenas vogais ou outros sons (cuja escolha específica é muitas vezes deixada ao critério da executante). Assim, a voz é usada mais pela sua dimensão fonética do que semântica, mais pela sua capacidade de produzir sons (que interagem com os da orquestra) do que de produzir sentidos através da palavra. Mesmo assim, aos poucos, a palavra começa a surgir. Primeiro, repetindo sílabas sem sentido, depois palavras soltas (como “Komm”); no fim, ouve-se enfim uma frase completa: “Eu sou o teu Labirinto”, numa citação de Nietzsche. O texto entra então em ressonância com o título da obra, levando-nos talvez, retrospectivamente, a interpretar a peça como uma longa tentativa, da parte da cantora, de se libertar de um labirinto ameaçador, representado pela própria orquestra. Aliás, esta obra completa uma trilogia de peças intituladas Labirinto, evidenciando a importância desta temática para o compositor.

    Um aspecto da escrita vocal, contudo, mantém-se sempre inalterado: o virtuosismo. Seja pela velocidade, seja pela utilização frequente do registo extremamente agudo, seja pelos saltos repentinos entre registos opostos, é uma obra que coloca grandes desafios ao intérprete. Sarah Wegener – a soprano que estreou a obra em 2014 e que a interpreta hoje também – confessou inclusivamente que a peça é “incrivelmente difícil” e que, na estreia, tinha “os nervos em franja”, até pelo pouco tempo que teve para trabalhar a obra. E acrescentou: “Tínhamos tão pouco tempo para trabalhar que Jörg Widmann me ligou e passámos três horas a percorrer juntos a partitura. Praticámos, literalmente, pelo telefone!” (citado em http://en.karstenwitt.com/magazine).

    Em geral, a obra é bem representativa do estilo de Widmann: pela energia constante da música; pela exploração dos extremos – tanto de registo (sobretudo sons muito graves) como de intensidade; e pela busca de novas sonoridades – até pelo facto de colocar na orquestra instrumentos pouco habituais, como é o caso, nesta obra, do banjo e de dois tipos de cimbalão (um húngaro, o outro bielorusso). Interessante é também o papel especialmente importante do clarinete – com partes verdadeiramente solistas –, da parte de um compositor que é também um clarinetista virtuoso. Widmann é, aliás, dos poucos músicos actuais que combina, ao mais alto nível, uma carreira de instrumentista e compositor.


    Daniel Moreira, 2015

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